Um poema, um erro e o eco de Tirésias
A versão mais completa do mito de Narciso pode ser encontrada em Metamorfoses, um poema do século I d.C., da autoria de Ovídio, um romano apaixonado pela cultura grega. Ovídio foi, no auge da fama, exilado por Augusto – uma espécie de Reagan da época, um homem astuto que percebia que a retórica dos valores familiares era uma ferramenta política bem mais eficaz do que eleições ou exércitos – por razões que, até hoje, permanecem um mistério.
A única pista que temos é do próprio poeta, que, numa série triste de cartas em verso dirigidas ao pétreo e implacável imperador, menciona um certo carmen et error, “um poema e um erro”. O consenso académico é, desde há muito, de que tanto o poema como o erro seriam de natureza erótica. Quando li pela primeira vez Metamorfoses, despojado da poesia num semestre frio e cinzento, senti como meu esse erro de desejo capaz de, terrível, nos afastar para sempre de casa, daquele lugar que nos define.
O mito que Ovídio narra – entrançando mitos antigos que ouvira e lera, e moldando-os naquilo que consideramos a versão definitiva – é-nos familiar: Narciso, um belíssimo jovem, apaixona-se irremediavelmente pelo seu próprio reflexo depois de parar para beber numa fresca clareira. Encantado pela sedutora imagem que pensa ser um espírito da água, vê constantemente frustradas as tentativas de lhe tocar: sempre que se inclina para lhe acariciar o pescoço, toca apenas água insubstancial; quando amorosamente se dirige àquele branco rosto de mármore, os lábios que cobiça movem-se também, mas não proferem um discurso claro. Depois de dias de desespero, definha........
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