Os serviços mínimos do coração…
Sobre a greve de comboios: é claro que podia narrar tantos episódios que me vêm à memória neste momento, episódios que estão bem estendidos na minha memória como o relvado de um estádio que não ousa secar enquanto ainda houver bola por rolar e campeonato por decidir. E eu gosto desta coisa, esta nossa caixa negra que é a memória, que regista os despenhos aéreos dos nossos dias, guarda qualquer tralha e qualquer trambolhão do nosso vazio dentro de nós.
Conto-vos o episódio da idosa que vi na Portela de Sintra, uma idosa que tentava acorrer aos saltos através de duas bengalas e levitava como se o chão fosse um trapézio. A idosa levou um século para atravessar a cancela e levou mais um século para se encostar num pilar metálico da estação para vomitar, com dificuldade, um escarro sem saliva, um escarro que ferveu no chão e borbulhou um hálito entulhado de comprimidos tomados logo pela manhã. Parecia uma cozinheira, a idosa: tinha a cintura coroada de um avental cheio de palmadas de gorduras, uma touca que escondia um elástico em forma de nó que segurava um tufo de cabelos brancos e uma blusa com alguns botões descosidos e fora das casas.
A idosa, de coluna curvada e anexada nas duas bengalas, mexeu no meio de tremores constantes o feijãozinho do seu aparelho auditivo para ouvir, bem de perto, a voz que anunciava nos alto-falantes da estação a suspensão de todos os comboios: era greve geral, sem serviços mínimos. A idosa pousou a sua pesada idade num banco........
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