Em 900 anos, que beleza perdura? Um regresso a Ponte de Lim
1. Um ponto de partida… e de regresso
Convocado a escrever pela celebração dos 900 anos de Portugal, e sem ser capaz de definir este fulgor baço de terra que é o nosso país, para pensar esta antiguidade fui remetido para o Norte, mais concretamente para a aldeia de Poiares, no concelho de Ponte de Lima, segundo muitos a mais antiga vila de Portugal. Novecentos anos corresponderão a cerca de 35 gerações humanas, isto é, milhões de seres muito distintos. O que pode ter de semelhante esta enormidade de aventuras pessoais?
Tendo em Poiares as raízes familiares, aí aprendi o sentido de ancestralidade. Passear na varanda dos saudosos avós, olhar os retratos de tantos antepassados, dispostos cronologicamente, deu-me a consciência de que somos apenas uma passagem pelo palco do mundo. Talvez por isso, nunca me perguntem quem sou, mas de quem sou. Esta pergunta remete-nos para a condição de herdeiros: pertencemos aos lugares e às gentes com quem crescemos e habitamos. Se resistimos e perduramos, se celebramos 900 anos, é porque algo permanece em tanta diferença. O que perdura para além das pedras em ruína e dos velhos retratos? Que beleza é essa que sobrevive e nos impele a regressar?
2. Um princípio feminino
Voltar a Ponte de Lima é recordar um foral de 1125, e nele um começo matricial. Para a narrativa comum, no início está uma mulher e um foral e não um ato de guerra ou um herói bélico. Num tempo em que se inaugura na Vila uma estátua de Afonso Henriques e uma comitiva de varões o homenageia, vale a pena não esquecer outra estátua, altaneira e firme: a Senhora Dona Teresa − mãe de reis e avó de impérios. Na concessão, por Dona Teresa, do foral ao Lugar de Ponte, ecoa um gesto feminino e logo outros vêm à memória: a Maria da Fonte, que, defendendo o que lhe parecia sagrado, se bateu por isso, e levando a mão à cintura, começou uma revolução; ou Antónia Ferreira, uma nortenha empreendedora e humanista, que bem percebeu que os laços de afeto superam o estrito legalismo em prol da dignidade humana.
Monumento à Condessa-Rainha D. Teresa, inaugurado em 4 de Março de 2002. Aqui, fotografado em 4 de Março de 2025, no dia em que Ponte de Lima celebrou 900 anos do seu Foral.
Celebrar alguma coisa é guardar e cuidar disso que se celebra, escolher o que nos importa recordar. Quando celebramos, queremos lembrar quem permaneceu na invisibilidade − e tantos são os rostos femininos de quem não reza a história… Neste sentido, tem-se escrito sobre as mulheres da terra, que sustentaram vilas, de bata e lenço à cabeça, essa armadura que silenciosamente vence o quotidiano. E tantas que viram partir para a emigração e para a guerra os seus mais queridos (vale sempre a pena regressar às Novas Cartas Portuguesas).
Contemplar a estátua de Dona Teresa é olhar a mátria e cantar versos do hino A Portuguesa pouco celebrados: “Saudai o Sol que desponta/Sobre um ridente porvir; […]/Raios dessa aurora forte/São como beijos de mãe,/Que nos guardam, nos sustêm,/Contra as injúrias da sorte”. A força dos beijos pode romper o modelo de varões contra canhões. A força que perdura é sussurrante e, ao mesmo tempo, é firme como o rio. E parece possível repetir “beijo o solo teu jucundo”, ao invés de rasgá-lo pela cobiça do lítio ou outra. O filme de Manuela Serra, O Movimento das Coisas, podia ser repassado como........
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