Hannah Arendt e as perneiras de Boécio
Há uma magnífica iluminura medieval num manuscrito preservado em Madrid, que retrata Boécio envergando perneiras douradas e um manto esvoaçante, preso à frente por um alfinete. Está sentado num banco alto; os seus pés cruzados pendem como tecido sobre o pavimento, que não conseguem alcançar; segura na mão um aparo de junco e um raspador; escreve em folhas de papel espalhadas sobre uma mesa alta. Levanta o rosto para uma mulher maravilhosamente morena. O súbito aparecimento da mulher ao seu lado abre o livro que está a compor: está a escrevê-lo na prisão de Pavia, onde o imperador Teodorico o prendeu, torturou e viria a matar. Esta cena é maravilhosa, uma espécie de Anunciação.
A atenção à realidade, diz Hannah Arendt, é uma forma de virtude. Mas o que é a realidade? A que é que nos obriga essa atenção? Nestes tempos sinistros que nos couberam em sorte, fará sentido continuar a narrar histórias de regressos, de leitos esculpidos em oliveiras, de uma gota de cera quente sobre a beleza de um corpo, de amantes que se encontram em sonhos? De que nos serve ouvir tais histórias? Mais: ouvi-las não será uma forma de fugir ao nosso compromisso com uma realidade que não cessa nunca de reclamar a nossa atenção?
O mundo tornou-se tão sórdido que nos parece que essas histórias, por mais belas que sejam, têm pouco ou nada a dizer-nos. Temos fome de realidade porque tudo se tornou estranho e irreal. É por isso que pedimos aos livros que nos falem do mundo em que vivemos e nos ajudem a compreendê-lo. No entanto, apesar dos problemas concretos que nos afligem, consequência das injustiças e dos abusos quotidianos, continuamos a assistir ao nascimento de filhos, a perdermo-nos nos labirintos do amor, a visitarmos em sonhos lugares incompreensíveis, a conversar em segredo com os mortos, a........
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