Ápio Cláudio e a morte do alfabeto
Mortos são aqueles cuja linguagem os abandonou: interromperam o tempo, o discurso, ficaram sem resposta. Essa ausência de resposta cria nos vivos uma angústia que os desorienta e os empurra para aquela regressão imaginária de trazê-los de volta ou de ir ao seu encontro. Que forma há de reter aqueles de quem a linguagem foge senão pelo silêncio? Aos mortos correspondem, pois, as crianças de tenra idade, antes de a linguagem os ter habitado plenamente. Tentamos aproximar-nos do silêncio dos pais mortos por intermédio do silêncio daqueles que não nasceram, ou que acabaram de nascer. A morte, nos lábios cinzentos dos mortos, é a comunicação impossível. Os sobreviventes constroem circuitos e ritos para restabelecer uma aparência de continuidade com aqueles que a linguagem, a sociedade, o amor, o tempo, o ar e o medo abandonaram. A linguagem é talvez a honra concedida a este género de animal aterrado.
Appius Claudius Caecus, por exemplo, propôs no século IV aC que se abandonasse a letra Z. Desejava, com essa medida drástica, proteger da morte a boca dos homens. Imaginava desse modo impedir que o miasma que esta letra encerrava contagiasse todas as outras que, no alfabeto, a precediam e sucediam: como imprimia no corpo daqueles que a haviam articulado a marca indelével e perigosa da morte, Ápio imaginava interromper esse poder, ou pelo menos suspendê-lo. Parecia-lhe inútil antecipar a sua chegada mimando os seus efeitos.
A sua proposta não teve os efeitos que esperava e não alcançou o favor dos seus concidadãos. Se Roma levou em consideração os argumentos que apresentou, não chegou a publicar o édito que proibisse a pronúncia, no interior dos muros da cidade, da letra maldita. Acrescente-se que o propósito de Appius Claudius, não oferecendo qualquer garantia quanto à eficácia que dele poderia resultar,........
© Observador
