A ilustre autarquia
Em 1900, no livro A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queiroz explicou candidamente que Portugal não era mais do que uma bela fazenda governada por uma “parceria”. Esta, composta por cerca de “trinta sujeitos”, mandava e governava a dita fazenda, tendo nas mãos os destinos dos restantes milhões de portugueses que nela passavam a vida, nuns casos a trabalhar, noutros simplesmente “a olhar”.
Não faço ideia se serão somente trinta indivíduos aqueles que mandam nisto tudo. Ajustados a uma população que, entretanto, cresceu de cinco a seis milhões para cerca de dez, talvez a parceria do Século XXI ande já nos cinquenta, sessenta indivíduos ou, mais arrojado, levando em linha de conta o crescimento económico do Estado Novo e, mais tarde, do final do Século XX nos tempos áureos do Cavaquismo, talvez a coisa já ande na ordem das centenas. Ainda assim, independentemente do número, o facto é que, entre os fundos europeus, as grandes linhas de investimento, a necessidade de trazer o “progresso”, fazer “avançar” Portugal, ou, mais simples e à sorrelfa, trocando licenças bancárias que monopolizam a capacidade criar dinheiro, e dívida, distribuindo-a por amigos e familiares que assim compram e vendem empresas, conselhos de administração, outros bancos, grandes conglomerados ou gigantescos “fundos”, no final, a coisa, mesmo em país pobre e remediado como este, ainda dá para muita gente.
Aliás, sejam esses quantos forem, verdadeiramente, a dita parceria até se “democratizou”. Ao contrário de tempos idos onde apenas a heráldica apropriada, ou o sobrenome, permitiam o acesso, hoje, e recompensando a insistência social generalizada na regra dos apelidos compostos, ainda que muitas vezes um seja da mãe e outro do pai, do triunfo da moda de andar a adivinhar quantos beijinhos dar na cara daquele desconhecido, isto enquanto, como sempre, se ajeitam também à necessidade de parar neste ou naquele bar, este ou aquele restaurante, usar esta ou aquela marca, frequentar esta ou aquela praia no Verão, a verdade é que o clube há muito que abriu as carteiras às notas sujas de nódoas, mas alto valor facial, de uma multitude de noviços, provincianos ou, como o pantomineiro Marcelo arvorou, rurais.
Todos estes, ainda que ensacados em fatos modernos e progressistas, fruto da produção em massa e do pronto-a-vestir, calçando, sem meia no Verão, sapatinhos de marca italiana com berloque, ostentando nos pulsos reluzentes relógios a condizer, fio no peito, e esteticamente empapuçados de brilhantina na tola, estão também mortinhos para se alçar ao famoso salto à (Armando) Vara — de caixas de banco a banqueiros da Caixa —, pelo que, como não poderia deixar de ser, não deixam de fazer as piruetas, os mortais e as genuflexões adequadas às suas próprias, altíssimas, nobilíssimas, aspirações.
No fim, junta-se a fome com a vontade de comer, pelo que um dos grandes legados da democracia não pode também deixar de ser o verdadeiro elevador social nacional em que se tornou a carreira partidária — como é evidente, aliás, para a maioria da população que, de fora, olha, ou pasma, com inveja e ranger de dentes, os pulos sociais que a militância política, junto com o chamamento de Lisboa, semeia........
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