Chegou a hora do pai
O meu pai era a autoridade e o principal provedor do sustento material da casa ainda que as suas capacidades financeiras e força de trabalho tenham sido depreciadas e ignoradas pelo Estado Novo: foi obrigado, por lei, a casar com separação de bens para prevenir qualquer intenção de aproveitamento do rendimento da funcionária pública – a minha mãe era professora do ensino primário. Hoje, o pai ganhou finalmente o reconhecimento da importância que merece no desenvolvimento activo da personalidade do filho, desde bebé.
Este é o meu primeiro Dia do Pai sem ele perto de mim. Há um ano tive a perfeita noção de que esse poderia ser o nosso último dia do Pai juntos, na Terra, e procurei vivê-lo com muita intensidade. Não me lembro absolutamente nada da oferta que lhe fiz, pois dava-lhe sempre uma pequena lembrança para assinalar a efeméride. Lembro-me apenas de que estive mais tempo com ele. Na precariedade dos seus 101 anos acamados, lúcidos, sem grandes capacidades de verbalização, conseguimos ter uma conversa rica, nos olhares, no forte toque de mãos, nas carícias na face, tudo intercalado pela leitura do livro que tínhamos começado a ler há alguns dias atrás: os 3 pastorinhos de Fátima. Rezámos o terço juntos e ouvimos música de S.Tomé, a terra onde ele passou 20 anos da sua vida de trabalho a levar para a frente o negócio, um espaço diversificado, onde vendia tudo o que importava. Uma espécie de bazar que era o principal ponto de abastecimento da ilha. Também ouvimos Amália Rodrigues e Cesária Évora, artistas que ele apreciava muito. Lembro-me que depois de sair, deixando-o aos cuidados da técnica de enfermagem e da auxiliar, conduzi até minha casa chorando convulsivamente e iniciei neste dia um luto antecipado.
Morreu precisamente dois meses depois, a 19 de Maio (2024). Recordo-me também de, uns meses antes de ele morrer, ter sido invadida por um sentido de urgência avassalador: tinha que cuidar também da saúde da sua alma, tinha que o ir preparando para enfrentar a morte com serenidade e paz. Era uma enorme responsabilidade que eu tinha o dever de assumir. Aproximei-o dos sacramentos e ele aceitou. Aderiu a tudo que lhe proporcionei: o sacramento da penitência (confissão); a santa unção; o terço que balbuciava com........
© Observador
