Martim Soares Moreno e a fundação do Ceará
Ao contrário do que sucede no Brasil, poucos são os que, em Portugal, já ouviram falar de Martim Soares Moreno, o «Coatiabo» de Iracema, romance de José de Alencar que representa um marco do património literário daquele país-irmão e da nossa língua comum (inúmeros alunos brasileiros devem estudá-lo quando preparam o «vestibular», exame de acesso ao ensino superior). Importa colmatar tão significativa lacuna, pois trata-se de um vulto fundamental para a compreensão da história do Nordeste num período em que, sob a égide da Monarquia Dual – quer dizer, de 1580 a 1640 –, a presença portuguesa esteve sujeita, nessa esparsa geografia, a dois movimentos aparentemente díspares quanto às suas causas, embora complementares quanto aos seus resultados.
De facto, foi uma época decisiva na expansão e consolidação do domínio colonial, às ordens dos três reis Filipes (e, mais tarde, igualmente de D. João IV), em vastas áreas da Capitania de Pernambuco, a «Nova Lusitânia», e plagas vizinhas, suscitando quer guerras, quer pactos com as «nações» indígenas que nelas habitavam. Também foi uma época de resistência às sucessivas tentativas de fixação, em sítios estratégicos do litoral, de colónias francesas, primeiro, e holandesas, depois, cujos interesses suscitavam igualmente, entre as comunidades locais, alianças a favor ou contra Portugal.
Capa do romance Iracema, de José Alencar.
O capitão-mor do Ceará distinguiu-se pelo apego à pátria nordestina – que tomou como sua –, pelo valor militar, pela inteligência política, mas seria imortalizado, na memória de cearenses, maranhenses, paraenses e pernambucanos, acima de tudo, por um outro atributo, reflexo desses predicados: a capacidade de interacção com as populações índias, aproximando-as da causa portuguesa, mas defendendo também os interesses que, como aliados, lhes assistiam. Fez parte, assim, dos precursores de um país miscigenado, que tornou o cruzamento de povos e civilizações um esteio para a sua futura afirmação.
É precisamente no espaço cearense, cujo âmbito Soares Moreno ajudou a definir e ordenar, tornando-a uma «circunscrição» dotada de razoável autonomia dentro da conjuntura do Brasil colonial, que se encontra um dos mais notáveis exemplos desse modo de proceder. Além disso, o cursus honorum do militar português oferece um caso digno de especial atenção para se entender como ocorria, num império à escala global, o recrutamento de quadros intermédios que assumiriam papel decisivo na organização do território brasileiro.
De uma vila do Alentejo às costas e sertões do Nordeste
Provavelmente nascido ao redor de 1586, Martim Soares Moreno teve por pais Martim de Loures e Paula Pereira, por avós paternos Francisco Anes e Brites Dias e por avós maternos João Pereira e Inês Dias, «todos naturaes de Sanctiago de Cacem[,] limpos, e honrados[,]» alguns dos quais lavradores, reza a sua habilitação à Ordem de Santiago – o que leva a dar-lhe a mesma naturalidade. Era sobrinho de Diogo de Campos Moreno, um militar experiente, oriundo de Tânger (viu a luz do dia, ca. 1566, nesta cidade litoral do Norte de África), o qual, ao receber a nomeação para o posto de sargento-mor do «Estado» do Brasil, o arrolaria como ajudante.
Viajou para Pernambuco, em 1602, na companhia do novo governador-geral do Brasil, Diogo Botelho, e do........
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