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A tabuleta Abramovich

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05.08.2025

Imbuídos de uma “questão palestina”, posto que requerentes israelitas havia a mais, políticos socialistas, comunistas e outros de pendor soviético orquestraram o fim de uma legislação que não desejavam. O Estado é soberano e decide do valor ou desvalor dos seus instrumentos legais, mas a tabuleta Abramovich, que foi erguida bem alto, não teria feito sentido se imperasse a decência, desde logo pelo facto de os novos judeus portugueses pertencerem, em esmagadora maioria, e a larga distância, a famílias sefarditas tradicionais do Norte de África e do antigo Império Otomano, o que a crise dos reféns de Gaza bem demonstrou, com raras excepções de latitudes outras, mas sempre nutridas do cumprimento dos critérios legais.

A tabuleta da destruição, a ser personalizada, mereceria outro nome, quiçá Ariel Cunio, que aguarda há quase dois anos pela sua sentença nos túneis da morte. Este pacato jovem não dava jeito como tabuleta, por não ser rico, nem conhecido, nem associado ao mundo do espectáculo, e porque pertence a uma família israelita de origem turca que deixou registos documentais nas instituições portuguesas de Esmirna denominadas “Kahal Kadosh Portugal” e “Dotar as Órfãs”. Mais inconveniente ainda é o facto de Cunio estar nas mãos de terroristas patrocinados pelas mesmas forças que sustentam carinhosamente muitas das organizações ligadas à esquerda política europeia. Ora, se a legislação tinha de ser chamada, à força, de “bandalheira”, nada poderia ser mais útil do que uma tabuleta com o nome de um “oligarca russo”, transformado em perigo público, quando à luz do mundo judaico aquele cavalheiro não é oligarca, nem russo. Vejamos porquê.

Em Setembro de 1941, as forças nazistas fizeram sua a floresta de Mažintai, na Lituânia, para fuzilarem toda a comunidade judaica de Eržvilkas. A família Abramovich escapou ao martírio, porque havia sido sequestrada, meses antes, e enviada para o território da Rússia, por ordem de Estaline, o paizinho dos povos, que se mostrava insatisfeito com aquela gente. Nachman Leibovich Abramovich, o grande filantropo da comunidade judaica lituana, experimentou o vagão do gado para conhecer de perto a Sibéria, onde haveria de falecer no ano seguinte, no campo n.º 7 de Nizhniaya Poyoma. Praticara o crime de ter trabalhado muito no comércio de fertilizantes, no cultivo de linho, na compra e venda de fibra e no arrendamento de imóveis. Possuía um hotel, armazéns de cerveja, restaurantes e vastas propriedades em Tauragė. Foi caçado como um animal na sua residência, num terreno privado de 26 hectares que se estendia até ao rio Šaltuona, e introduzido à força num comboio que partiu para as profundidades siberianas, uma viagem de milhares de quilómetros, juntamente com uma multidão faminta de correligionários que se amontoavam em vagões hermeticamente fechados, nos quais uma vasta porção de almas sucumbiu pelo frio.

Para o regime soviético, uma das máquinas mais perversas que os judeus conheceram em três milénios – e a história familiar do autor destas linhas, de avó Abramovich, é prova plena de tal facto –, considerava que Nachman era um capitalista desprezível, um usurpador e um inimigo do povo. Da sua família nuclear, igualmente arrancada à terra-natal, faziam parte a mulher, Tauba Leja Berkover, e os três filhos do casal: Leiva, de 12 anos, Abraham, de 8, e Ahron, de apenas cinco, todos condenados a não mais verem o pai de família. De família judia de muitos bens, Tauba possuía, antes da descrita fatalidade, um navio de grande porte que se dedicava ao transporte de mercadorias e passageiros entre Kaunas a Klaipėda.

Não era de pouca monta a fortuna do jovem casal numa época em que 80% dos navios lituanos pertenciam a famílias judias. No outono de 1940, as autoridades soviéticas nacionalizaram os bens da comunidade judaica. Assim se rouba a propriedade judaica, por despacho. Por meses, o trabalho físico extenuante foi o único companheiro de Nachman, num local onde as temperaturas gravitavam muito abaixo dos zero graus. Cortava árvores, podava madeira e transportava longos toros para armazéns. Trabalhava por turnos de 12 horas e recebia duas rações por dia a par de meio litro de água gelada. A recordação do Egipto fazia-se agora sem calor. O resultado era o mesmo. Morria-se de exaustão, de falta de vitaminas, de disenteria e em acidentes de trabalho. A escravidão comunista produziu naquele campo, e em muitos outros, toneladas de cadáveres, muitas vezes empilhados em carroças, que acabavam despejados em valas comuns. Este foi o destino da mais relevante personalidade da comunidade judaica lituana da época e fonte de sustento das famílias locais mais carenciadas.

De acordo com sobreviventes do campo, Nachman tinha a esperança de poder regressar à Lituânia com a sua amada Tauba e os seus queridos filhos, cujo destino, embora menos trágico, foi doloroso também. Arrancados da sua terra e do clima a que se habituaram, cedo se viram sem bens, alojamento e comida. Não falavam russo e haviam aterrado num local de todo desconhecido. A sobrevivência dependia agora exclusivamente da mãe. Enfrentaram a mais completa miséria em território hostil. E no entanto, Tauba venceu. Durante o dia, trabalhava num restaurante, à noite e aos fins de semana confeccionava roupa, e conseguiu reunir clientes entre membros do partido comunista e as respectivas esposas, pois só aquela nomenclatura parasita possuía abundantes riquezas por aquelas bandas. Os filhos, vencidas a fome e a amargura lancinante iniciais, cresceram saudáveis. Leiva e Abraham formaram-se em escolas e institutos de tecnologia e Ahron apaixonou-se pela música e cedo começou a frequentar uma escola adequada e aulas de canto. Tocava violino e interpretava as árias de Lenski, o que não poderia ser mais adequado à situação, pela necessidade de lamentar a perda de um grande amor – o pai – e a fragilidade passageira da felicidade humana.

A modéstia absoluta da habitação gerida por Tauba contracenava com um enorme piano de cauda negro, que a mesma conseguira adquirir, à volta do qual a prole rezava por Nachman e, depois da sua trágica morte, por uma alma de abençoada memória. A mãe criou os três filhos sozinha, em sofrimento profundo. Nunca deixou de escrever às instituições soviéticas pedindo permissão para regressar à Lituânia. Os pedidos foram rejeitados. Havia sido uma pessoa muito rica e tinha de expiar a sua culpa até ao fim da vida. A última carta inglória está datada de 1957: “Dolorosamente, não aguento mais o clima do norte. Faz 15 anos que o meu marido faleceu.”

Os restos mortais de Nachman há muito apodreciam numa sepultura colectiva. Mais........

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