O Sacrifício em Áulis: Portugal Perante o Espelho
A bruma da manhã em Áulis, densa e imóvel, não é apenas um fenómeno meteorológico; é o estado de alma de uma nação em suspenso. A vasta armada grega, símbolo de um propósito coletivo, encontra-se paralisada, não por correntes marítimas, mas por um vento que teima em não soprar – o vento da clareza, da direção, da esperança partilhada. O oráculo, essa voz ancestral que tanto revela quanto oculta, pronunciou a sua sentença terrível: apenas o sacrifício de Efigénia, a inocência personificada, poderá desencadear os elementos e permitir que a História retome o seu curso.
Portugal, neste rescaldo de umas eleições de maio que se adivinham mais como um sismo do que como uma simples contagem de votos, contempla o seu próprio reflexo nesta praia mítica. O PSD/Aliança Democrática, investido da vitória, mas despojado da maioria que confere leme firme, observa um mar político onde as ondas do costume se quebram contra rochedos inesperados. E o Chega, qual maré montante que redesenha a costa, emerge como segunda força, obrigando a nação a confrontar-se com interrogações que julgava adormecidas nas criptas do passado.
O que nos sussurra este silêncio dos ventos? Que altar improvisado teremos de erguer, e que Efigénia contemporânea será conduzida a ele, para que a nau do Estado possa, por fim, soltar as amarras? Esta não é uma mera figura de estilo. É o cerne da angústia política que se instala, um eco daquela interrogação fundamental que a filosofia grega legou ao Ocidente: como conciliar a necessidade da ação com a integridade dos princípios? Como governar quando o próprio ato de governar parece exigir a profanação do que nos é mais caro? A política, aqui, despe-se das suas vestes pragmáticas para se revelar como um drama existencial, onde a liberdade e o destino se entrelaçam num nó górdio.
A Longa Calmaria: Genealogia de um Desassossego
A paralisia de Áulis não é um evento isolado, um raio em céu azul. É o culminar de uma longa estiagem, de um desgaste lento e progressivo do solo onde outrora floresceram as esperanças coletivas. A democracia portuguesa, como tantas outras no Ocidente, experimentou nas últimas décadas um fenómeno que transcende a simples crise de governação: um certo “cansaço dos materiais”, uma erosão da confiança não apenas nos políticos, mas nas próprias instituições e na narrativa de progresso contínuo que as sustentava.
O filósofo Byung-Chul Han fala de uma “sociedade do cansaço”, onde o imperativo do desempenho e a atomização dos indivíduos geram exaustão e depressão. Poderíamos, por analogia, falar de uma “democracia do cansaço”? Uma democracia onde a repetição de ciclos, a percepção de uma casta política entrincheirada nos seus próprios interesses – o “Bloco Central” das conveniências, mais do que das convicções – e a incapacidade de dar resposta às ansiedades profundas dos cidadãos (o futuro do trabalho, a crise climática, a vertigem da precariedade) foram gerando uma fadiga cívica.
A saúde que definha à espera de cura, a educação que se debate com........
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