A Paz Assombrada: Podem os Tratados Escapar?
No rescaldo de conflitos, quando as armas silenciam e a poeira assenta, a humanidade volta-se para um ritual antigo e solene: o tratado de paz. Vemo-lo como o instrumento que sela o fim da hostilidade, a promessa de um novo começo, a fundação jurídica de uma coexistência pacífica. Mas será esta visão tão límpida quanto parece? E se o próprio ato de fazer a paz contiver, paradoxalmente, as sementes da violência que procura erradicar?
Esta questão incómoda foi levantada de forma penetrante há um século pelo filósofo alemão Walter Benjamin. Num ensaio denso e desafiador, “Para a Crítica da Violência”, ele sugeriu que a paz declarada num tratado pode, na verdade, conter a guerra “essencialmente em si” [1]. Para Benjamin, o tratado não seria a antítese da violência, mas uma das suas manifestações mais subtis, um mecanismo que simultaneamente funda e conserva o direito através de um poder que, em última análise, repousa na força.
Esta perspetiva sombria colide frontalmente com a esperança luminosa do Iluminismo, personificada por Immanuel Kant. No seu célebre projeto “À Paz Perpétua”, Kant vislumbrou um futuro onde a razão, a lei e a diplomacia transparente substituiriam para sempre o recurso à guerra [2]. Para ele, o tratado de paz, quando devidamente concebido e ratificado entre nações racionais, seria a pedra angular de uma ordem global pacífica e duradoura.
Quem tem razão? Estará a paz que assinamos condenada a ser uma mera gestão da violência, uma pausa armada no ciclo interminável do conflito, como sugere Benjamin? Ou podemos aspirar, como Kant, a uma paz genuína, construída sobre alicerces jurídicos e racionais capazes de transcender a lógica da força? Este debate filosófico, longe de ser um mero exercício académico, toca no coração das nossas tentativas contemporâneas de construir a paz num mundo fraturado por conflitos.
O Sonho Kantiano: A Paz como Arquitetura da Razão
Para compreender a magnitude da crítica de Benjamin, é essencial primeiro apreciar a grandiosidade da visão de Kant. Escrevendo no final do século XVIII, uma era marcada tanto pelas esperanças do Iluminismo como pela realidade brutal das guerras europeias, Kant propôs um plano audacioso para erradicar a guerra [2]. A sua premissa era simples, mas revolucionária: a paz não é o estado natural das relações humanas (ou entre Estados), mas algo que deve ser ativamente instituído através da lei e da razão [3].
O seu ensaio “À Paz Perpétua” está, ele próprio, estruturado como um tratado. Começa com “Artigos Preliminares”, uma série de proibições destinadas a purificar as condições para uma paz genuína. Kant exige, por exemplo, que nenhum tratado contenha cláusulas secretas que permitam futuras hostilidades; que nenhum Estado possa ser adquirido por outro através de herança, troca ou compra (tratando-o como propriedade); que os exércitos permanentes sejam gradualmente abolidos, pois representam uma ameaça constante; que não se contraiam dívidas nacionais para financiar guerras; que nenhum Estado interfira violentamente na constituição ou governo de outro; e, crucialmente, que mesmo em tempo de guerra, se evitem atos (como assassínios, envenenamentos, quebra de capitulações) que destruam a confiança mútua necessária para uma paz futura [2, pp. 11-21]. Estas não são meras recomendações pragmáticas; são imperativos racionais para criar um ambiente onde a paz possa florescer.
Mas a verdadeira substância do projeto kantiano reside nos “Artigos Definitivos”. O primeiro estipula que a constituição civil de cada Estado deve ser “Republicana” [2, pp. 22-28]. Para Kant, isto não significa necessariamente uma democracia direta, mas um sistema baseado na separação de poderes e,........
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