Ricardo Leão, o huno contra o PS
Os acontecimentos na câmara de Loures, os mais recentes e outros não tão recentes, podem vir a ser um dos capítulos da história do Partido Socialista mais digno de La Fontaine – para além de ter um leão é uma história engraçada, e destila moral. Nela, é patente o conflito entre as duas forças do destino mais poderosas no Largo do Rato (La Fontaine, outra vez…): ou seja, o que se pensa ser o ethos melhor do Partido socialista e o que se sabe de certeza ser a sua vocação para a chicana despudorada.
Não é fácil escrever sobre política, a política dos portugueses em particular. Está demasiado perto, os seus actores vêm de pijama para a rua e, falando-se sobre um deles, pode incorrer-se na injustiça de envolver a sua esposa que também é ministra, um primo que tem um coração de ouro ou a sua filha que é secretária de Estado. As suas amizades e inimizades envolvem uma química intestinal muito própria, resultam de uma combustão imperfeita de onde se soltam fumos e cheiros, originam resíduos que depois aproveitam para lançarem uns aos outros. Chegar próximo desse meio implica uma exagerada vontade de compreender a alma humana, o que é nobre, mas também uma tolerância ilimitada ao desgosto, o que seria de desaprovar se não fosse heróico.
Os partidos políticos são entidades complexas. A parte substantiva do seu corpo decorre das linhas programáticas, dos grandes discursos e da personalidade das suas principais figuras. Mas todos esses constituintes são voláteis, desenham apenas uma figura tosca que normalmente se bandeia e só por altura de eleições procura algum aprumo. O seu corpo mal substantivo depende de pequenos episódios para adquirir contornos, precisa de ser adjectivado pelas acções comuns dos seus homens e mulheres para ser entendido.
Ricardo Leão é um socialista que desde 2021 enfrenta uma complexa situação social herdada do seu antecessor na câmara de Loures, o autarca por 8 anos, ex-deputado do Partido Comunista, Bernardino Soares. A habitação ilegal é um problema muito grave na autarquia e o homem, em vez de se queixar de António Costa – seu antigo chefe e primeiro-ministro que tornou tudo aquilo possível antes de se asilar na Europa – tem tentado resolvê-lo. Pese embora a notória barba e a estrutura maciça, Ricardo Leão não escapa à semelhança com uma criadita cansada que limpa incansavelmente o chão encharcado, todos os dias mais encharcado, sem que a patroa tenha a inteligência de fechar a torneira. Mas tem tentado, e segundo as suas palavras, que pela esperta intuição de todos parece mais honesta do que a palavra dos seus camaradas, tem usado de meios justos e humanos. Terá oferecido o seu gabinete a cada um dos clandestinos para resolver o problema – em vez de promover a judicialização do caso e, talvez, a instalação de todos num edifício de alojamento local explorado pelo Ministério da Justiça. Fez bem, a maior parte daqueles seres, pelo menos as crianças – sempre de grande efeito e inexcedível utilidade para a tropa fandanga de jornalistas idiotizados pela extrema esquerda – merece ser tratada com respeito e compaixão. Já os seus pais ficaram, nesse caso, em posição duvidosa. A maioria recusou durante longos meses comparecer e colaborar na resolução do seu problema; e dos que compareceram, e a quem foram oferecidas alternativas de acolhimento, apenas uma pequena minoria aceitou.
Um bairro clandestino é uma indignidade para quem nele vive e uma acusação para quem permitiu as condições da sua existência. Os primeiros foram obrigados a habituar-se, os segundos ignoram a sua culpa, de livre e alegre vontade. Os primeiros dependem de ajuda para uma solução que os conforte. Os segundos não dependem da ajuda de ninguém, podem perfeitamente pintar a cara de preto e, por decência, abandonar a política a favor de uma carreira como mandaretes de senhora.
Um bairro clandestino é um lugar perigoso onde se acumulam combustíveis para........
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