O Rei Lear na ONU: a tragédia do reconhecimento da Palestina
Quando Shakespeare concebeu o velho Rei Lear a repartir o trono entre as filhas, não se limitou a escrever uma tragédia familiar sobre a ruína de um pai: compôs um tratado filosófico sobre como o poder, mesmo quando se retira, continua a projectar-se. A abdicação de Lear, travestida de gesto pacificador (e, não por acaso, de vaidade), não trouxe concórdia: desencadeou a catástrofe. No núcleo da tragédia está a fraqueza do monarca, feita de cegueira moral, de arrogância e, sobretudo, de uma incapacidade radical de discernir a verdade escondida no coração humano (poderosa intuição de Shakespeare para designar a incapacidade de ver a realidade tal como ela é): incapaz de reconhecer a lealdade silenciosa de Cordélia, expulsa-a – do coração e do reino –, ao mesmo tempo que entrega confiança e poder às filhas pérfidas e intriguistas, Goneril e Regan, que já afiam os dentes à sombra do trono.
O enredo, implacavelmente shakespeariano, não concede tréguas: Goneril e Regan, investidas da herança do reino e predadoras da vulnerabilidade paterna, convertem o gesto magnânimo do pai no emblema da própria decrepitude. Cordélia, a filha honesta, que recusara adulação, é banida. O trono fragmenta-se. E Lear, humilhado e despojado da sua majestade, compreende demasiado tarde que o abandono do poder não produz serenidade, antes convida a dissimulação e precipita a dissolução.
A lição de Shakespeare – a de que a fraqueza não tem defesa contra a sua própria vocação, acabando devorada por si mesma – encontra eco nas páginas das relações internacionais modernas. Na leitura que faz da crise do Suez de 1956 em Diplomacy (1994), Henry Kissinger observa que a decisão de Eisenhower de forçar a retirada da Grã-Bretanha, da França e de Israel, em vez de consolidar a unidade ocidental, transmitiu ao mundo árabe precisamente o mesmo sinal de hesitação, de divisão e de fraqueza que Lear projectara às suas filhas. Tal como o velho rei que, ao abdicar da coroa, esperava colher devoção mas apenas expôs a sua fragilidade, também Eisenhower imaginou que, humilhando os seus aliados coloniais, conquistaria o respeito de Nasser. Na realidade, o seu gesto apenas alimentou a percepção de um Ocidente dividido, enfraquecido e, portanto, vulnerável. O tipo de mensagem que afasta Cordélia e atrai Goneril e Regan.
O desfecho, portanto, não diferiu do de Lear: toda a projecção de fraqueza equivale a uma abdicação, mesmo que venha do “Rei Lear” do sistema internacional: os amigos humilhados, os inimigos encorajados, e o campo aberto para a penetração do rival que se pretendia, justamente, conter – a União Soviética. Em vez de conquistar “hearts and minds”, conquistou dúvidas, vácuos e, por fim, novos inimigos.
Na leitura shakespeariana de Kissinger, quanto mais Washington tentava aplacar Nasser, mais este, como uma Goneril do Suez, exigia novos tributos e favores, gravitando na direcção de Moscovo e encarecendo, a cada nova manifestação de fraqueza, o preço da sua lealdade. A fraqueza, aqui como em Lear, não apazigua: excita as ambições e multiplica as traições.
O episódio do Suez ilustra assim, de forma paradigmática, como a projecção de fraqueza tem o efeito de corroer a posição internacional de uma potência, mesmo quando animada pelas melhores intenções pacificadoras. A lição é simples e........
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