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 A flotilha das duquesas que navegam por Gaza

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09.10.2025

O nosso Eça, entomólogo moral da burguesia, retratou um dia as suas “duquesas moças, cobertas de diamantes”, que condenavam “a má organização da sociedade, comendo codornizes trufadas em pratos de Sèvres”. Descrição clínica e imperecível de uma elite que, entre garfadas de luxo, descobria o prazer estético da revolta moral. Quanto maior a miséria alheia, maior o deleite estético. Deleite afrodisíaco, inigualável, sádico. E, por isso mesmo, actual.

Os diamantes parisienses foram substituídos pelos lenços palestinianos, as codornizes trufadas por selfies envaidecidas e os salões cintilantes de Paris pelas águas mansas do Mediterrâneo. Mas o essencial, que nunca muda, não mudou. As duquesas de Eça já não citam abertamente Karl Marx e o Comintern, mas, devidamente adaptados ao palato contemporâneo, Francesca Albanese e a ONU. Marx, aliás, previra-o quando, pretendendo corrigir Hegel, disse que as grandes figuras históricas aparecem sempre duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.

Dizem as duquesas que navegam por Gaza, mas, na verdade, é apenas por si mesmas que navegam. O seu destino humanitário termina sempre no ponto em que começou: o espelho. As crianças palestinianas, essas, são apenas figurantes de uma dupla encenação: a propaganda terrorista do Hamas e o teatro narcisista dos seus idiotas úteis. Para as novas duquesas, os palestinianos não existem senão como superfícies reflectoras, espelhos vivos onde a consciência revolucionária, derrotada pela história e corroída pelo tédio, contempla, fascinada, a sua própria inocência reencontrada. O sofrimento dos palestinianos não passa do objecto estético onde ensaiam o eterno papel de redentoras. Como outrora Alcibíades que, segundo Plutarco, cortou o rabo ao próprio cão apenas para que dele, e não do cão, se falasse, com pena, em Atenas, é a sua dor fingida, e não a dor autêntica do povo palestiniano, que ocupa o centro da cena.

Por isso é que, antes mesmo de chegarem a Israel, já o drama não era o sofrimento dos palestinianos, mas o seu próprio: ei-las sem água, sem comida, sem telemóveis, drones no ar, ABBA na rádio, percevejos na cela – juram as duquesas, indignadas com a falta de requinte com que são forçadas, pelos sionistas, a combater o sionismo. Nos relatos fidedignos que extraem da sua imaginação, vislumbra-se um autêntico Auschwitz em plena costa do Levante. É delas, sempre delas, o centro da cena onde decorre a dor humana mais pungente. Não são instrumentos ao serviço do........

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