Um género de atirador
É possível que a palavra que melhor enforma o espírito da modernidade e a sua ampla confiança na ideia de progresso seja a palavra utopia. Não foi ela criada no início do século XVI por Thomas More para retratar a ambição humana de criar um lugar que, dotado de instituições justas e perfeitas, garantiria a felicidade dos homens? E não constitui este ensejo o propósito da modernidade?
É verdade que muitos recuam até Platão para traçar uma tradição utópica, encontrando n’A República um exemplo mais antigo de utopia. Mas mesmo aqui, a sofiocracia – o melhor dos governos, que seria, para Platão, o governo dos sábios – acabaria por degenerar em outras formas menos boas, de acordo com o espírito cíclico do pensamento grego. Os modernos são diferentes.
Para o pensamento moderno, a utopia seria um estádio final – aquele para o qual devemos gradual ou revolucionariamente caminhar e cuja distância é medida pela noção de progresso. Seria possível, assim, aperfeiçoar continuamente as instituições até acabar com as injustiças e as desigualdades. E perante as vozes céticas que questionavam se uma natureza decaída e imperfeita poderia garantir a utopia (dúvida que o próprio More expressou com a palavra u-topos, não lugar), começou a germinar a ideia de que não haveria uma natureza humana e que, por isso, não haveria limites nem condicionamentos ao que podemos fazer.
Ao longo do século XX, estas ideias foram amadurecidas pelo princípio de que tudo é construção social, o que significaria que nasceríamos como páginas em branco – a chamada teoria da “blank slate” ou tábua rasa – e tudo seria resultado de socialização.
O mesmo é dizer: todos os problemas do mundo resultariam de formas de socialização erradas, instituições mal organizadas e políticas públicas insuficientes. Mas todos esses males poderiam ser resolvidos politicamente.
Como acontece frequentemente com as ideias filosóficas, o seu problema reside no facto de serem interessantes no mundo das ideias, mas falharem no mundo real. Neste caso, não só os grandes projetos utópicos que foram tentados falharam em toda a linha, como o conhecimento que temos adquirido sobre o homem, o modo como
pensamos e por que razão agimos como agimos – e que........
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