O mal-estar da civilização
Regressemos a William Golding e ao seu Deus das Moscas. Quando os rapazes perceberam que viviam porcos na ilha, um deles organizou um grupo de caçadores para garantir comida. Contudo, no primeiro momento em que, de faca na mão, se deparou com um animal, não conseguiu matá-lo. Todos compreenderam porquê:
“por causa da enormidade da faca a descer e a rasgar a carne viva; por causa do intolerável sangue.”
É apenas mais tarde, quando pinta a cara e a máscara que o camufla ganha vida, que o rapaz se liberta das regras da civilização. É um momento de transformação que a humanidade nunca esqueceu: os rapazes “compreendiam muito bem a libertação na selvajaria que a pintura de camuflagem proporcionava”.
O efeito simbólico da máscara está estudado: quando nos mascaramos, as convenções sociais ficam suspensas (não é exatamente o que acontece no Carnaval, nas suas diversas manifestações?) e sentimo-nos libertos para agir de modos diferentes do habitual. Mas essa fácil suspensão também mostra como as regras da civilização são uma fina camada de verniz – e que nos faz esquecer de que, por debaixo dela, a nossa natureza animal contém em si a possibilidade de selvajaria e violência.
A civilização é, assim, um difícil e precário equilíbrio entre regras e instituições que nos permitem viver com a menor violência possível. Mas como foi criada e como se sustenta?
Com a modernidade e as Luzes, e aquilo que poderíamos designar a viragem racionalista na filosofia, criou-se a expectativa – e a ilusão – de que aquele artifício moral fosse resultado da Razão. O pensamento racional e científico seria o garante da civilização (e, claro, do Progresso), levando-nos a reconhecer, através de um uso objetivo da Razão, as regras necessárias para uma convivência pacífica. Viver moralmente implicava conhecer as regras........
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