Das falsas sensações
No conto The Murder in Rue Morgue, Edgar Allen Poe lança o estilo policial tradicional com uma história que junta mistério e orangotangos com um investigador brilhante e polícias pouco competentes — o palco clássico da boa narrativa policial. A determinada altura, C. Auguste Dupin, o investigador-herói que no final revelará a verdade, citando Rousseau, descreve de forma muito elegante a polícia pouco competente que atabalhoa a investigação como gente que tem a qualidade de conseguir “nier ce qui est, et d’expliquer ce qui n’est pas” — em Português, negar aquilo que é e explicar aquilo que não é.
Ora, mais que tudo, esta expressão assenta que nem uma luva no ambiente mediático actual. Permanentemente, de forma afoita, trata o jornalista típico, infelizmente majoritário, seja o escriba de redacção que ninguém conhece, seja o todo-poderoso oráculo apresentador do Telejornal, de postular, propagandear, repetir, aquilo que não é, nem poderia ser para alguém com um olho meio aberto, enquanto ocupa a restante parte do seu tempo a negar, ignorar, vilipendiar mesmo, as maiores evidências, assim atrapalhando, tal como os polícias de Poe, a capacidade das pessoas compreenderem o mundo que as rodeia e os mistérios que nele ocorrem. Deste modo, ao invés de, como seria sua função, ajudar a revelar a verdade escondida por trás dos interesses que, como é natural em sociedades complexas, ajudam a movimentar as alavancas do poder, o poder mediático, hoje, faz parte da cortina de fumo que tudo torna difuso, opaco, distorcido.
O expoente máximo deste estado de coisas foi – como deveria ser evidente hoje para todos se houvesse no espaço público e publicado um mínimo de crivo, um vislumbre de responsabilidade social, ou um fogacho de capacidade para a autocrítica – a célebre, mas entretanto completamente esquecida e raramente mencionada, pandemia COVID. Aliás, desde aí, a insanidade da afirmação daquilo que não é nem pode ser, bem como a negação do simples bom senso, tornou-se uma espécie de regra não-escrita espalhada por todo o lado, a propósito de tudo, desde a política à meteorologia, da geo-estratégia à ciência, da moral aos bons costumes sociais.
A incompetência generalizada é grave e, admita-se, enervante, mas pior mesmo é a capacidade do “jornalista”, hoje elevado a guardião da verdade e das boas opiniões políticas, ainda conseguir, mesmo nestes termos, ser bem-sucedido a moldar e influenciar as narrativas sociais que, mais tarde, em coro também, nos cafés, o público repete com o orgulho próprio de quem, por osmose televisiva, já também acha que sabe aquilo que é, tal como o que não é. No final, sobra uma espécie de ignorância militante, afoita na perpetuação da mentira, da moscambilha e da trapaça generalizada que grassa como sendo verdade por todo o espaço mediático fazendo com que, no conforto da repetição acéfala do grupo, os “consensos” entre os emissores e os receptores da “informação” acabem boiando em conjunto no charco da crendice e da completa falta de noção que, nada sabendo, julga tudo saber.
Depois, sobra ainda o arrojo de virtude auto-congrulatória onde o jornalista-tipo – refiro-me naturalmente àquele certificado, carimbado e treinado “pelas autoridades competentes” – se convence a si próprio de que fala sempre verdade, descortina a “realidade dos factos” e age de forma independente, neutra, acima dos........
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