Bons sentimentos
O truque mais velho na política democrática é simular um amor imorredoiro dos políticos pelo povo. Sucede que o amor pode assumir muitas formas. O político que quer vencer descobre que o caminho mais curto para o poder aponta para a exibição do amor pelo povo governado enquanto compaixão. É um caminho mais curto porque não exige competências, conhecimentos nem qualificações. Exige sobretudo um certo talento de encenação e uma considerável falta de vergonha.
O amor que politicamente conta é o amor-compaixão. Isto quer dizer que o político ama o povo porque é capaz de se compadecer dele, sentindo verdadeiramente a dor que o povo sente. Escusado é dizer que o amor que este político nutre pelo povo é, no jogo de aparências, tanto maior quanto menor for comprovadamente o amor dos restantes políticos pelo povo sofredor. Como é difícil mostrar o amor que se sente, é mais aliciante mostrar o contraste entre, por um lado, o político bom que sofre com o sofrimento do seu povo, e, por outro, o político mau que é “insensível” às dores populares. A alquimia do sucesso na política das emoções está na exaltação da superior compaixão que uns sentem e na acusação incessante de que os outros não a sentem.
Ora, como é que o político mostra que sente as dores populares mais autenticamente do que os outros seus adversários que competem com ele pelo favor – pelo amor – do povo? Tem de mostrar que está mais próximo do povo do que os seus competidores. O político “sensível” é aquele que está “próximo”; o “insensível” é o que está “distante”. Pelo contrário, a distância demonstra a insensibilidade, e, portanto, a indiferença perante o povo, porque a partilha da dor só é possível em proximidade. Afinal de contas, não nos compadecemos de puras abstracções. Precisamos de estar próximos da experiência concreta de sofrimento. Uma experiência de sofrimento que possamos pelo menos ver.
Este truque foi sempre praticado na experiência relativamente longa da democracia ateniense........
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