A encruzilhada dos comunistas
A sociedade europeia avançada dos nossos tempos está estratificada em torno de uma multidão de classes e de sectores de classe que nada têm a ver com a realidade do tempo de Marx. É plural e fragmentada. Em vez de classes perfeitamente distintas e definidas temos uma multidão de contornos pouco precisos a cujo conjunto se chama «povo». As ideologias que lhe correspondem são variadas e sem grande consistência interna. Trata-se de uma constatação sociológica elementar. O discurso ideológico dominante tende a ser o da pequena burguesia urbana.
Hoje é assim na Europa e há quase cem anos também era. A diferença é, no entanto, fundamental. O peso da pequena burguesia urbana é hoje muito maior e a estrutura de classes é muito mais volúvel. Tudo isto coloca enormes dificuldades aos movimentos comunistas e mais ainda aos esquerdistas
Os comunistas perceberam aquela realidade desde cedo mas hesitaram na maneira como com ela conviver. Os mais lúcidos compreenderam que no meio daquela amálgama era preciso garantir que a classe operária não ficava dissolvida no meio do «povo» e mantinha uma forte posição independente conduzida pelo partido. Os comunistas mais lúcidos perceberam desde cedo que na Europa a ideologia da pequena burguesia, parte principal da classe média, integrava elementos autoritários e reaccionários mas também democráticos e progressistas pelo que era necessário apanhar estes e colocá-los a reboque do partido comunista. Este não podia avançar com uma estratégia radical que o deixaria isolado, cedendo terreno ao fascismo que logo o aproveitaria para colonizar a pequena burguesia servindo-se dos elementos mais autoritários e xenófobos presentes na sua mescla ideológica. Foi precisamente isso que aconteceu nos anos trinta na Alemanha de Weimar e a consequência ficou à vista. O fascismo aproveitou-se da agitação nacionalista e do descontentamento que abundava na classe média, divulgou um eficaz discurso agressivo em que pontificavam o nacionalismo, o militarismo, o imperialismo, o combate às liberdades democráticas etc… Com o partido comunista isolado, empregando a linguagem cifrada dele própria, o fascismo conseguiu naquela altura incutir na pequena burguesia urbana e no campesinato, que largamente o apoiaram, a ideologia que lhe interessava ou seja, conseguiu vender-lhes elementos daquela ideologia agressiva própria do «grande capital». O fascismo convenceu a classe média que dela era próprio um destino «nacional» esmagando os obscuros interesses da reacção e os da classe operária. Era a «nação» e não o socialismo o seu destino e a «tradição» popular ia dar ao racismo. Foi assim que o nazismo chegou ao seu fito, mobilizando as massas contra o poder tradicional, o clero e os comunistas. «Gegen die Roten und die Reaktion», cantavam as falanges nazis, como se via no filme «os Malditos» do Visconti, o que deixava confusa a ignara estudantada esquerdista do meu tempo de Coimbra. Claro que mal chegados ao poder, os nazis trataram logo da saúde aos apoiantes mais radicais de que tinham outrora precisado. Substituíram o movimento pelo regime. Na Alemanha o partido nazi passou a ser cada vez mais nacionalista e cada vez menos socialista.
Para os comunistas, o fascismo não podia deixar de ser a ditadura sangrenta do grande capital a que este recorre sempre que o capitalismo está «em crise». Mas houve um aspecto do fascismo que eles não podiam negar, embora com ele convivessem mal; é que o fascismo aí onde existiu teve sempre o apoio das massas, designadamente em Itália e na Alemanha. Até o Trotsky percebeu isso. Como o conseguiu? Pois, como disse, através da manipulação de um bloco ideológico nem sempre lógico e coerente, é certo, mas que servia na perfeição os respectivos interesses. Contava para isso com os aparelhos ideológicos do estado, desde a escola, à Igreja, às forças armadas, às organizações de juventude, ao associativismo controlado, ao corporativismo de estado, etc… Foram eles que permitiram organizar um movimento de massas anti-socialista, nacionalista e racista.
A partir daqui para os comunistas abriam-se duas vias; a primeira foi a da estratégia da classe contra classe, sem intermediários, que deu origem ao chamado «esquerdismo». Este, cego à realidade, não se apercebeu que não se podia deixar a classe média no regaço do fascismo para que este a pudesse utilizar para os seus fins. A III internacional começou por aqui com a fraca tese do «social-fascismo», seguida em Itália por Bordiga, mas logo se arrependeu e a partir de 1935, já tarde, adoptou outra via mais lúcida quando percebeu que estava a isolar a classe operária deixando as mãos livres ao inimigo para levar a reboque a classe média.
O Komintern arrepiou, portanto, caminho e adoptou a estratégia frentista ou de alianças estratégicas para barrar o caminho ao fascismo. Vigorou até à sua dissolução em 1943. A estratégia era agora utilizar o jacobinismo radical presente na classe média e capitalizar o seu descontentamento mas desta feita para a colocar a reboque dos desígnios da classe operária sob a orientação do partido comunista. Os objectivos eram, para já, «populares» e «democráticos», mas lá estaria o partido para garantir que os fins dos comunistas estavam presentes e conseguiam mobilizar o «povo» atrás deles. A estratégia, em síntese, é esta; fazer da classe operária conduzida pelo partido........
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