A catarse dos ressentidos
O esquerdismo português, com a lucidez que o caracteriza, está convencido que comprou a galinha dos ovos de ouro. Já desistiu do proletariado e do ataque ao patronato. Agora só quer saber das «vítimas» e dos correspondentes carrascos. A favor daquelas já não reivindica melhores salários nem mais auspiciosas condições de trabalho. Nada disso; tudo isso está ultrapassado. O que quer agora são «direitos», cada vez mais «direitos», a favor das vítimas da «opressão» que, obviamente, detecta em toda a parte, e compensações pelas agressões e ofensas que lhes foram causadas. Há cada vez mais oprimidos e descortina-os até em sítios onde nunca se pensou que eles pudessem estar. Mas lá estão, coitados, a reclamar compaixão e direitos, muitos e diferentes direitos, direitinhos e direitões a ponto de a noção universal de direitos fundamentais ser desfigurada.
A questão é muito simples. Para o esquerdismo tudo se pensa a partir de conceitos abstractos em que a realidade tem de encaixar à força. O ocidente racionalista, cristão e moderno é uma vasta estrutura de opressão que tem de ser denunciada e desconstruída. Quem tem autoridade para isso são os pobres dos oprimidos que ele gerou e que se sentem vitimizados. Daí o culto da revolta, da insubmissão e outras emoções fáceis.
Não passa pela cabeça daqueles bestuntos que as realidades históricas não podem ser avaliadas com a grelha que hoje usamos para avaliar a contemporaneidade. Na sua ânsia de corrigir os males do passado ocidental, que tanto os vitimizaram, os oprimidos vão querer avaliar a política de centralização do poder real em D. João II e em D. Manuel I com os olhos dos eleitores de hoje e execrar a monarquia absoluta joanina em nome da democracia parlamentar. Não tardará descobrirão, eu sei lá, que a mutilação genital feminina foi a solução que alguns povos colonizados encontraram para sobreviver depois de saqueados pelos brancos. A vitimologia esquerdista baseia-se na irracionalidade emocional e na falsificação da história. É um hino ao fanatismo, à estupidez e à má-fé.
Nós é que no nosso papel de malévolos e egoístas carrascos brancos, racionalistas e modernos não víamos os oprimidos. Mas eles aí estão por toda a parte; são os homens que oprimem as mulheres, os namorados as namoradas, os novos que oprimem os velhos, os filhos da madrugada oprimidos pela guerra colonial, os senhorios os inquilinos, os heterossexuais oprimem os homossexuais, os europeus são os eternos opressores dos povos colonizados, os professores passam a vida a oprimir os alunos e então quando os chumbam, nem se fala, os gentios que oprimem imenso os ciganos, os cultos os incultos, os bonitos fartam-se de oprimir os feios, os bem vestidos os mal vestidos, os saudáveis que oprimem os doentes, os magros os gordos e os abundantes em cabelo os carecas como eu. Sinto-me, aliás,........
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