A construção de Afonso Henriques herói fundador
A glória e a reputação do bobo e do rei serão exatamente as mesmas se ele próprio ou alguém por ele não lhe prolongar a memória através da escrita – é com esta afirmação que, por volta de 1159, John of Salisbury, em Policraticus, destaca a importância da cronística como testemunho e como instrumento de consolidação do Reino. Contar, compreende-o bem o autor nesta que é considerada a primeira obra de teoria política medieval, é, no caso dos soberanos, não só garantia contra o esquecimento, mas é também imprescindível para construir uma relação dinâmica entre o espaço, o tempo e os homens, alimentando o capital identitário de um povo.
Responsabilidade do narrador, contar a história das personalidades e dos eventos depende do próprio tempo da escrita, sendo uma escolha ditada pelas necessidades históricas do presente, correspondendo não raras vezes a estratégias ideológicas políticas e/ou religiosas, no sentido de legitimar o presente e garantir uma determinada ideia de futuro. A narrativa medieval da história – que usa e atualiza materiais de textos precedentes, numa contínua operação de integração de outros corpos na anatomia da escrita, reformula e recompõe, acrescenta e elide, alarga e condensa – colabora na mitificação do passado e na construção de heróis agregadores, numa constante reescrita ditada por diferentes conjunturas.
Estátua medieval de D. Afonso Henriques. Museu Arqueológico do Carmo.
A figura de Afonso Henriques construída pela prosa historiográfica medieval é precisamente exemplo dessa recomposição ao longo dos séculos. As narrativas, de forma funcional, salientam determinadas qualidades, colocando um véu indulgente sobre outras, ampliam ações consideradas determinantes para a legitimação do reino, elidindo o que é supérfluo, numa construção que aspirava dar a Portugal um herói fundador que garantisse a legitimidade, o engrandecimento da honra e a sobrevivência do reino.
As fontes narrativas mais antigas sobre o primeiro reinado português – os Annales domni Alfonsi Portugallensium regis (c.1185-1195), cujo testemunho mais conhecido é a Chronica Gothorum; os diversos livros de linhagem........
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