Dignidade Sempre
Nessa noite era a terceira vez que a dor lhe interrompia o breve sono que a idade permitia. Acordado por entre a escuridão e nela, de olhos fechados, como que para proteger as memórias, tentava sossegar-se embalado em memórias que projetava num filme, enquanto adormecia com um sorriso na alma. Porém, nessa noite, não o estava a conseguir. Nessa noite, a dor e a insónia tinham unido esforços.
Perdido nos pensamentos sentia-se velho e só. Eduarda tinha morrido há dois anos. Fora uma parte de si que partira, a melhor tinha a certeza. Sobrava-lhe agora a amargura da espera. Os dois filhos tinham vida própria e estavam longe. Via-os esporadicamente, cada vez mais afastados, cada vez mais de menos. Nessa noite gostaria de os ter ali por perto, gostaria de lhes dizer o quanto sentia a sua falta. Olhou para o relógio. Ainda não eram três e a dor, e a solidão já eram insuportáveis. Ligou para o 112 e poucos minutos depois tinha à porta uma ambulância para o transportar para uma unidade de urgência. Por sorte era o hospital onde tinha dedicado 43 anos da sua vida. Saíra há 14 anos e isso de alguma forma incomodava-o.
Quando se reformou, foi como se a instituição no virar das 24 horas, um pequeno passo de eternidade, tivesse esquecido os 43 anos em que calcorreara aqueles corredores, passado pelas mesmas portas que agora cruzava em sentido oposto, portas que agora o viam como um estranho, alguém incómodo, o viam como um “utente”. Com as instituições sempre fora assim, sem sentimentos. Com as pessoas era diferente, no dia seguinte era como nada tivesse ocorrido. Continuavam a tratá-lo com carinho e a deferência que sempre sentira nas décadas em que por ali circulara.
Porém, esse estado de graça não era perene e com o cair da folha do outono, sentia-se despido de memórias. Já não era só a instituição que o não reconhecia, agora eram também as pessoas que dele já não guardavam........
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