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Deixem de conspurcar a palavra genocídio

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23.09.2025

Portugal resolveu alinhar pelo mais fácil e ilusoriamente mais popular: este domingo, formalizou o reconhecimento de um Estado que não existe, não tem fronteiras definidas, não tem autoridade que controle todo o território e muito menos tem legitimidade democrática ou cumpre as condições que o Governo português hipocritamente definiu a 31 de Julho. Não me apetece porém debater estas contradições, nem sequer discutir aquilo que me dizem – estas coisas nunca são assumidas publicamente – que mais do que convicções, aquilo que move o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros é a ambição de Portugal voltar a conseguir uma temporada como membro do Conselho de Segurança, oportunidade de boas prebendas para alguns dos seus quadros. Adiante, que nisto do reconhecimento da Palestina Portugal valerá tanto como Andorra ou São Marino, dois dos países com que entendeu alinhar-se.

O que me interessa hoje por hoje é o tema do alegado “genocídio” que dizem estar a acontecer em Gaza. É certo que a nossa diplomacia e os nossos responsáveis (MNE, PM, PR) ainda não deram o passo fatal, ainda não formularam essa acusação, mas não é possível ligar uma televisão sem ver uma alimária a perorar sobre o tema – desculpem a frontalidade e os termos, mas há alturas em que o que é demais… é demais. Por isso, em vez de discutir as condições que o Governo de Portugal colocou para o reconhecimento do Estado da Palestina e não cumpriu, vou ao que inquieta essas mentes exaltadas que por aí anunciam a sua piedosa revolta.

O tema não é para menos: se há crime contra a Humanidade que nos deva perturbar é o crime de genocídio. Não se trata apenas de massacrar civis, nem de bombardear cidades, nem de se acumularem os mortos no terreno de combate, trata-se de algo qualitativamente diferente – implica um “acto realizado com intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo humano identificado por nacionalidade, etnia, raça ou religião”. Esta é a definição das convenções internacionais – a convenção sobre o genocídio de 1948 e o Tratado de Roma relativo ao Tribunal Penal Internacional – e nesta formulação a palavra chave é “intenção”, aquilo que os juristas definem como “dolus specialis”.

A existência de intencionalidade é central pois quaisquer dos actos depois definidos como podendo materializar o crime de genocídio – o homicídio ou ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo, a sua submissão deliberada a condições de vida capazes de provocar sua destruição, a imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos ou a transferência forçada de crianças – não o definem só por si. A Rússia, por exemplo, procedeu à transferência forçada de crianças na Ucrânia, isso foi considerado um crime de guerra mas não um crime de genocídio.

Não sou jurista, nem pretendo ser, faço mesmo parte dos que entendem que não são os juristas que governam o mundo e sim os responsáveis políticos, pelo que não vou entrar nas discussões retorcidas que ocupam certas mentes perturbadas. Acho mais importante distinguir a tragédia de uma guerra – e a guerra em Gaza é uma tragédia, sobre isso não tenho qualquer dúvida ou reserva – do discurso apocalíptico, e profundamente político, que confunde tudo.

Na história recente da Humanidade houve poucos genocídios, mas quando recordamos o genocídio arménio, o Holocausto nazi ou o massacre dos tutsis percebemos facilmente que estamos a falar de algo muito diferente daquilo que se está a passar em Gaza.

Vamos porém por partes, pois o tema exige uma análise detalhada, a começar por algo que nunca ou quase nunca é considerado: as leis da guerra. Não é um detalhe e muito menos um adquirido, pois aquilo que temos vindo a convencionar como regras nos conflitos internacionais pressupõem que os contendores combatem usando métodos equivalentes, isto é, que há um exército que enfrenta outro exército. Não é um detalhe, pois quando assim é os combatentes estão por regra bem identificados, usam fardas, não se misturam nem escondem entre as populações civis.

O que se passa na guerra de Gaza é algo de totalmente diferente, é muito mais próximo daquilo a que se convencionou chamar “guerra........

© Observador