Há uma Filosofia Portuguesa?
Dizer hoje que há filosofia portuguesa é uma bizarria. Afirmar que é superior à filosofia alemã só pode ser o delírio de um faccioso.
Por que há ideias que fazem história e outras que se perdem ou se escondem? As monografias sobre a história das ideias apresentam-nas numa sucessão de autores e obras que se encadeiam num progresso coerente, mesmo nas descontinuidades. A história das ideias, mais preocupada com as ideias do que com a história, raramente se apercebe da importância dos acidentes (sociais, políticos, editoriais) na difusão do pensamento.
Tal como a escolástica portuguesa — que produziu as obras por que se estudou filosofia por toda a Europa nos séculos XVI a XVIII — foi varrida da história das ideias pela determinação férrea do Marquês de Pombal, também o movimento da Filosofia Portuguesa permanece na penumbra. As causas desse desconhecimento e dessa falta de atenção são acidentais e o maior acidente é a falta de amor-próprio com que os portugueses se tratam. Indeciso entre o que sabe que é e a tristeza de como está, o povo português desdenha-se.
O movimento da Filosofia Portuguesa, que tomou o nome de O Problema da Filosofia Portuguesa (1943) de Álvaro Ribeiro, foi um desses raros lampejos que rompeu, ou tentou romper, esse desdém.
É preciso, no entanto, esclarecer que a Filosofia Portuguesa não preconiza uma “filosofia de Portugal”, mas é uma via de pensamento da razão universal, que aceita o adjetivo pátrio por fidelidade ao modo como o pensamento se exprime e imprime, que é a língua portuguesa, na tradição portuguesa.
Nota dessa abertura foi o incansável trabalho de estudo e tradução dos principais pensadores da civilização ocidental. Foi a Filosofia Portuguesa que deu acesso ao público português a várias obras de Aristóteles, Platão, Dante, Descartes, Nietzsche, Hegel, entre muitos outros. Largo ponto de contacto que a Universidade já não dava, desde os Conimbricenses.
O que caracteriza a Filosofia Portuguesa é, por um lado, a fidelidade a essa matriz que consiste na atualização do platonismo e do aristotelismo, resistindo à modernidade e, por outro lado, a liberdade.
O que talvez tenha sempre levantado suspeições sobre a Filosofia Portuguesa foi a forma como se afirmou livre face às instituições políticas e religiosas. É que se a filosofia se apresenta como uma teologia, uma cosmologia e uma antropologia, ela tem em si a garantia e o princípio de si. A decadência da escolástica deu-se quando o estudo da filosofia se degradou em pretexto do ensino da teologia. Por isso, a Filosofia Portuguesa manteve sempre distância dos diversos regimes políticos que atravessou, tal como das hierarquias eclesiais e da Universidade, que lhe rejeita a originalidade e repugna o estilo.
Orlando Vitorino (1922-2003) é o último filósofo da Filosofia Portuguesa. Fiel à tradição dos seus Mestres, não se pode etiquetá-lo nem como um conservador, nem como um liberal. É difícil enquadrar o pensamento de Orlando nos polos ideológicos em que se fixaram as perspetivas do homem contemporâneo, o que também o torna suspeito.
A sua obra rica e multifacetada, que além da filosofia se espraia pelo teatro, pelo cinema e pela atividade política, é marcada por uma re-atualização do platonismo face aos problemas, ou obstáculos, como diria o nosso autor, que a modernidade colocou ao pensamento.
Persuadido de que o tempo de hoje e dos últimos 200 anos foi o que Hegel e o hegelianismo fizeram dele, estudou minuciosamente o pensamento moderno, sobretudo de Hegel, de quem traduziu parte da Estética e Princípios da........© Observador
