Zurara e a gente woke. Mentiras e mal-entendidos
Com a agudeza de espírito que o caracterizava, o poeta popular António Aleixo definiu magistralmente a forma mais eficaz de mentir. Disse ele que “para a mentira ser segura e atingir profundidade, tem de trazer à mistura qualquer coisa de verdade”. Seja por ignorância, por mero mecanismo de repetição do erro ou por má-fé, a gente woke — que, como Manuel Maria Carrilho nos lembra em A Nova Peste, um livro que aconselho a quem queira perceber o que é o wokismo, vai de sociais-democratas até a bloquistas —, tem procurado difundir mentiras que dão trabalho a contrariar e a desfazer.
Uma dessas mentiras envolve Gomes Eanes de Zurara, comendador da Ordem de Cristo e protegido do Infante D. Henrique, cronista no reinado de D. Afonso V — em cuja casa foi, aliás, educado. Em meados do século XV, Zurara escreveu, entre outras obras, um texto vulgarmente conhecido por Crónica de Guiné. Há umas passagens dessa crónica, mais concretamente do seu capítulo XXV, que têm sido muito usadas pela gente woke. Ainda recentemente Lídia Jorge e a realizadora Dulce Fernandes recorreram a elas, como muitas outras pessoas da sua confraria ideológica vêm fazendo de há anos a esta parte, para tentarem mostrar que Zurara seria assumidamente crítico do tráfico de escravos e contra ele. Em que se fundamentam? No facto de Zurara ter escrito, na Crónica de Guiné, que se comovia ao ver a dor dos africanos, aumentada até ao paroxismo pela partilha dos escravos e a separação de parentes. Dessa comoção do cronista extraem os espíritos woke a conclusão mentirosa de que ele acharia a escravatura degradante e injusta e citam muitas vezes excertos escritos por Zurara que parecem indicá-lo. Um dos parágrafos mais frequentemente citados, modernizando-se a linguagem para ser mais facilmente entendível, é o seguinte: “Mas, para a sua (dos escravos) dor ser mais acrescentada, chegaram os que estavam encarregados da partilha e começaram a separá-los uns dos outros, a fim de fazerem lotes iguais. Por isso havia necessidade de se separarem os filhos dos pais, as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros. Não se tinha qualquer consideração por amigos ou parentes, cada um ia parar onde a sorte o levava”.
Estará esta passagem adulterada? Não. Zurara escreveu-a, de facto, mas escreveu muito mais e sobretudo escreveu coisas que mostram o contrário daquilo que Lídia Jorge, Dulce Fernandes e muitas outras pessoas da sua área política e ideológica presumem ou julgam saber e nos querem inculcar. É por isso que as suas interpretações acerca da relação de Zurara com a escravatura são, mais do que equivocadas, profundamente........
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