Lagos: o museu, o arqueólogo e eu
Critiquei recentemente o Museu de Lagos pela latitude que tem dado a projectos woke sobre escravatura e colonialismo, e o arqueólogo Luís Raposo, ex-director do Museu Nacional de Arqueologia, sentiu necessidade de vir contestar o que escrevi e defender o museu algarvio, apresentando as coisas segundo um esquema tripartido: de um lado da disputa cultural estariam os woke; do outro lado, os defensores da “epopeia civilizadora portuguesa”; no meio, virtuosamente no meio, o Museu de Lagos a quem Raposo deseja êxito e que se mantenha nessa suposta linha intermédia.
Mas há uma outra linha que o seu esquema deixou de fora: a dos que conhecem e respeitam a História, entendida aqui como actividade intelectual virada para a descoberta e compreensão do passado sem intenção de o aplaudir ou condenar. Luís Raposo deu-me a subida honra de mencionar o meu nome como sendo o de alguém que se evidencia pela “sanha anti-woke” e por ser um dos defensores “da epopeia civilizadora portuguesa”. Mas aí, como diria Chico Buarque, “a notícia carece de exactidão”. Sem rejeitar, longe disso, a epopeia civilizadora portuguesa e reafirmando, como português que sou, o orgulho que tenho no meu país, eu pertenço a uma outra categoria que Luís Raposo não referiu e é nessa qualidade que tenho escrito nos jornais. De facto, eu sou especialista em história da escravatura, algo que Raposo manifestamente não é. Revela, aliás, sérias lacunas nessa área do conhecimento, o que é lamentável porque, com as suas mal-informadas opiniões, contribui para perpetuar, na memória colectiva, falsidades e interpretações erradas.
Passo a exemplificar. Escreveu Luís Raposo o seguinte: “Todo o elã nacionalista dos Descobrimentos conseguiu em Lagos incorporar o ‘mercado dos escravos’. E até a descrição pungente de Zurara sobre a revoltante condição de uma ‘carga’ de azenegues, feitos escravos, com o Infante a supervisionar tudo e chamar para si os lucros do primeiro lote, foi absorvida pela narrativa reaccionária portuguesa: era assim, tinha de ser assim, porque afinal o que se queria era a salvação das almas daqueles incréus (menos dos corpos, já se vê… até porque muitos chegavam já mortos, dadas as sevícias sofridas e as horríveis condições da viagem). E depois… bom, depois escravos havia muitos, até portugueses/as às centenas (quiçá milhares), capturados e assim mantidos em África… até muito tarde, até mesmo depois da escravatura já ter sido abolida em Portugal”.
O que aqui salta primeiramente à vista, para lá do tom trocista, é a leitura tendenciosa da crónica de Zurara. A sua descrição dos escravos que começam a chegar a Lagos não é apenas “pungente”, como afirma Luís Raposo, é, também, auspiciosa,........
© Observador
