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Um livro inacabado: notas de psiquiatra no Setembro Amarelo

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12.09.2025

Todos os dias, da janela do autocarro a caminho do trabalho, deixo que o olhar se perca na montra de uma funerária no centro da cidade. As urnas, expostas com adereços da estação ou enfeitadas com motivos alusivos a feriados, parecem querer suavizar o inapagável. Por vezes até se nota um toque de humor cortês, como se fosse possível domesticar a ideia da finitude. Mas há dias em que essa visão se torna insuportável. A morte, em todo o seu silêncio, pesa de uma forma muito dura.

A morte é inevitável. Alguns afastam qualquer pensamento acerca dela, outros procuram-na de forma incessante. Há quem tropece nela cedo demais, e há também encontros que parecem não ser mero acaso, mas sim o resultado de um desgaste interior lento e profundo. Para quem trabalha em psiquiatria, esses encontros deixam marcas. Mais cedo ou mais tarde, cada psiquiatra é obrigado a gravar na memória um nome que se junta à sua própria história, um nome que não se apaga. Esses nomes, anónimos para quase todos, são para nós cicatrizes invisíveis. Vidas que se extinguem de forma abrupta, deixando para trás perguntas que nunca terão resposta. Não são apenas estatísticas ou relatórios. São rostos que nos acompanham, vozes que ecoam, histórias que se entrelaçaram com a nossa. A perda de um paciente por suicídio não é um evento que se arquiva num processo clínico; é uma memória que regressa, vezes sem conta, nos dias mais inesperados.

A prática clínica em saúde mental é feita de contrastes. Há dias em que testemunhamos pequenas vitórias: um sorriso tímido depois de semanas de silêncio, a coragem de alguém que........

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