Que verdade suportamos?
Existe um teatro primordial onde se decide o destino de toda a vida cívica. O seu palco não é o parlamento nem a praça pública, mas a própria consciência humana, esse espaço interior onde se negoceia incessantemente a fronteira entre a ilusão necessária e a realidade insuportável. Neste palco, duas forças eternas digladiam-se: de um lado, a arquitetura do consolo, com as suas promessas de abrigo e de sentido; do outro, o vento gélido da verdade, que ameaça derrubar todas as construções. A escolha que nos é apresentada em cada ciclo de poder não é, na sua essência, entre programas ou ideologias, mas entre habitar a segurança da lisonja ou suportar a intempérie vertiginosa da parrhesia.
A lisonja, na sua aceção política, é a mais antiga e sofisticada das artes de governação. É a engenharia da alma coletiva, a ciência de construir abrigos contra a ansiedade do real. A sua gramática foi codificada por mestres do pragmatismo, de Cícero a Maquiavel. No manual de campanha romano, ela é a técnica para a conquista do poder: a promessa certa, o afago oportuno, a arte de espelhar os anseios de cada eleitor. A lisonja é a moeda transacional num mercado de vontades, onde a verdade é um luxo irrelevante face à urgência da vitória. Com Maquiavel, porém, a lisonja transcende a tática e torna-se uma filosofia de Estado, quase uma forma de caridade trágica. O Príncipe deve erguer uma fachada de virtude não por hipocrisia, mas por um sentido de responsabilidade para com a fragilidade do tecido social. A estabilidade da comunidade, argumenta o florentino, depende da capacidade do líder de proteger o povo da verdade crua, essa força imprevisível e muitas vezes dissolvente. A lisonja, aqui, é um pacto de proteção: o governante oferece uma narrativa coesa, um mundo privado com sentido, e em troca o povo abdica da perigosa busca por uma verdade que poderia fazer ruir todo o edifício. Este pacto assenta numa profunda intuição sobre a natureza humana: a nossa insuportável leveza perante o caos. Preferimos, como o Grande Inquisidor de Dostoiévski, o pão, o milagre e a autoridade à liberdade terrível de confrontar o real por nós mesmos, de carregar o fardo de uma existência sem garantias. O Inquisidor compreende que a humanidade, na sua maioria, não anseia pela verdade, mas pelo fim da angústia. A lisonja é, pois, o pão espiritual que o poder distribui para saciar esta fome metafísica. É a forma mais elevada do que Pascal........
© Observador
