Tradição e modernidade: quando a cidade enjeita o campo!
Este texto nasce da necessidade de questionar leituras sobre o mundo rural que, embora não tratem apenas de touradas, emergem em artigos recentes — “O que resta da tourada”, de António Guerreiro (Público, 29 de Agosto de 2025), e “A tradição não valer mais do que a vida humana ou animal”, de Inês de Sousa Real (Público, 30 de Agosto de 2025). Reconhecer que a vida, humana ou animal, exige proteção incondicional é ponto de partida inegociável. Porém, reduzir essa exigência a slogans morais, desligados de políticas sociais que toquem a realidade das populações, significa esvaziar a própria ideia de cuidado. O debate público que se ergue a partir desses textos, incisivos ou apelativos, mostra apenas fragmentos de um problema muito mais vasto: a forma como o olhar urbano, muitas vezes mascarado de progressismo, projeta uma superioridade moral sobre a ruralidade.
Compreender o rural não é mero exercício académico; exige humildade epistémica. Os saberes acumulados em gerações de pastores, viticultores ou criadores não cabem em manuais de gabinete. Há uma ciência silenciosa inscrita na experiência: o agricultor que lê a terra pelo cheiro da chuva, o pastor que reconhece a fragilidade do rebanho na oscilação de um vento, o apicultor que entende as abelhas como extensão da paisagem, o campino que sabe do “trapio” do touro na campina. Estes saberes não procuram plateias nem reconhecimento mediático: sustentam a sobrevivência. Reduzi-los a “barbárie” ou a “folclore” é amputar séculos de memória ecológica e de práticas de coexistência, precisamente no momento em que o mundo urbano clama por soluções para a crise climática. O paradoxo é evidente: condena-se o rural enquanto se apropriam dos seus ritmos como “descobertas” ecológicas.
O desprezo citadino manifesta-se em dois planos: o material e o simbólico. O primeiro, e sem grande incómodo “urbanita”,........
© Observador
