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O Espírito de uma Revisão Constitucional

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02.06.2025

1.Em 1215, um rei inglês foi obrigado a assinar um documento em latim que não compreendia bem, que proibia pontes com portagens sobre o rio Tamisa e isentava de impostos as heranças, exceto se estas incluíssem falcões. Fora as bizarrices históricas, este documento lançou o alicerce das constituições modernas e é um dos motivos pelos quais podemos hoje discutir a revisão da Constituição da República Portuguesa.

O documento de 63 cláusulas impunha severas restrições a João I de Inglaterra, rei que reinava quando os reis ainda se achavam ungidos por Deus para comandarem os povos. A Magna Carta foi uma posição da aristocracia inglesa com vários propósitos, mas com um muito em particular: limitar o poder (real).

Mas o documento ia mais longe do que limitar o poder do rei: limitava também o poder judicial das cortes, assegurando que nenhum homem livre poderia ser preso, exilado ou privado dos seus bens sem julgamento justo; e criava um conselho de barões que superintendia a ação régia – um antecedente primitivo do que viria a ser a Câmara dos Lordes.

2.A Magna Carta não é, do ponto de vista político ou até jurídico, uma constituição no sentido moderno. Não o é porque não emanava da vontade do povo — fonte de legitimidade democrática e de soberania —, mas sim dos interesses particulares de uma elite aristocrática. Ou seja, não era universal, não corporizava os interesses mais amplos de todos, incluindo servos, camponeses, mulheres ou crianças. Não o era também porque não definia uma arquitetura institucional, um arranjo entre governo, parlamento, tribunais, reguladores e demais instituições, embora concebesse um conselho de barões que de uma forma muito lata é um esboço de um controlo parlamentar.

Por fim, numa perspetiva mais jurídica, a Magna Carta não tinha supremacia jurídica e era circunstancial, ou seja, era tão somente um conjunto de normas impostas que não se sobrepunha às outras leis e que poderia ser revogável, como aliás foi após recurso ao Papa.

No entanto, no espírito da Magna Carta – porque o que discutimos é política e não somente direito – estavam as raízes de importantes princípios que norteiam quase todas, se não mesmo todas, as constituições das democracias liberais modernas. O primeiro é o da limitação do poder. No caso, o poder régio, mas o princípio aplica-se a qualquer fonte de poder. A Magna Carta limitava este poder absoluto do rei. O espírito de uma constituição é também esse: condicionar o exercício do poder não ao arbítrio de uma entidade divina, real ou até de uma maioria democrática, mas à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos enquanto entidades únicas e autónomas.

A forma como a Magna Carta é imposta a João I de Inglaterra também evidencia um outro importante princípio constitucional: os direitos dos sujeitos não são concedidos pelo soberano, são anteriores ao próprio. Não são uma concessão, são um direito natural. O rei, ou qualquer outro titular do poder, deve então reconhecê-los.

Esta perspetiva de que existem direitos naturais inalienáveis que pertencem aos indivíduos e que estes devem ser incondicionalmente respeitados pelos titulares do poder colide com a visão daqueles que, como Thomas Hobbes, acreditavam que os direitos e liberdades eram concedidos pelo soberano. Ver os direitos como concessões abre um perigoso precedente: aquilo que o Estado pode dar também pode retirar.

3. Felizmente para todos nós, aquela que é a primeira grande constituição de um regime democrático moderno, a Constituição dos Estados Unidos da América, não reflete esta visão concessional hobbesiana, mas antes a visão da Magna Carta, de direitos que são naturais e........

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