Feridas no coração: a necessidade do perdão, especialmente no casamento
“Errar é humano”, diz o antigo adágio. Se fôssemos sozinhos no mundo, nossos tropeços nos atingiriam apenas com as consequências diretas de nossos próprios atos, sobre nós próprios: aprenderíamos, na medida da nossa inteligência, com as dores que nos coubessem. Mas não vivemos sós: vivemos entrelaçados.
O mais solitário dos seres humanos está ainda, por razões (e mistérios) das quais não pode escapar, ligado a todos os demais. E na vida em comunidade, e sobretudo na vida em família, o erro reverbera com outro peso: causa dor no próximo, pode causar consequências graves, profundas e duradouras, tenha sido o nosso erro cometido por descuido, por egoísmo ou maldade. E de fato, “vemos o melhor e o aprovamos – mas escolhemos o pior”, dizia o poeta, ou “não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, este faço”, dizia o Apóstolo. Erramos, erramos com os outros. Assim, sem querer – ou sem querer, querendo –, prejudicamos alguém.
O peso dessa ação está geralmente no fato de termos colocado nossa vontade acima do bem do outro. E o que se inicia como um deslize ou uma reação impensada logo se converte, no que foi prejudicado, em ferida. E feridas doem. Diante de um agravo que sofremos – físico, moral, emocional –, é quase inevitável que brote a centelha do revide. Essa primeira reação é compreensível: sentimos a ofensa e, de forma quase instintiva, queremos reequilibrar a balança com outro golpe. É “justiça”. Será preciso, então, recordar o que dizia Viktor Frankl: entre o estímulo e a resposta há um espaço. É justamente nesse intervalo que habita a liberdade, apanágio do ser humano – e, como um filho dileto da liberdade, o perdão.
Essa resposta espontânea de “devolver na mesma moeda” vem carregada de uma dor que se mistura à ira. É uma dor que se projeta para fora, que tem vontade de gritar, de atacar, de restabelecer a justiça pelas próprias mãos. Porém, muitas vezes, ela não encontra saída. A ofensa permanece, o agressor talvez desapareça, mas a dor... ai, essa dor se transforma em mágoa. E a mágoa, quando regada com o tempo, vira ressentimento. E o ressentimento é uma espécie de prisão com grades invisíveis. Quem o alimenta, ainda que em silêncio, revive mentalmente a cena da dor, como num disco riscado. A lembrança vem sem ser chamada, muitas vezes despertada por um detalhe banal – uma frase, um rosto, um cheiro – e então o tempo estaca, e aquilo que estava adormecido volta a nos atormentar. A vida toda é sugada por aquele momento negro. É aqui que o perdão aparece, não como um gesto fraco ou ingênuo, mas como necessidade vital. Assim como a confiança, o perdão é uma força estruturante da convivência humana. Homem nenhum é uma ilha. Precisamos confiar para viver, e precisamos perdoar para continuar vivendo. Sem confiança, não avançamos; sem perdão, não voltamos a andar.
Eu já tive a oportunidade de tratar deste tema anteriormente, e vale ainda o que eu disse ali, mas, dada a sua importância capital, achei por bem prosseguir nessa meditação, e avançar dos princípios teóricos, que iluminam nossa inteligência, para algumas consequências práticas, que nos ajudam a orientar os afetos, fazer um propósito e, enfim, a agir. O Dia dos Namorados, aliás, que comemoramos nesta quinta passada, valeu de inspiração. São muitos os coraçõezinhos vermelhos, os balões e a flores – e quem não gosta deles? Não nego –, mas de modo algum é sobre parvulezas que se sustenta um casamento, e tampouco sobre elas deve sustentar-se um verdadeiro namoro, que almeje o altar. Vejamos com atenção, pois.
A confiança é a discreta engrenagem do cotidiano: confiar que a casa estará no mesmo lugar ao fim do dia, que o ônibus chegará, que as pessoas continuarão sendo, amanhã, mais ou menos o que são hoje. Não testamos todos os parafusos da vida antes de usá-los: confiamos. E é essa confiança que permite que a vida prossiga com alguma paz. O perdão é semelhante. Também ele é um “ato de fé” que sustenta os vínculos. Quando alguém nos fere, uma parte de nós quer se proteger – e com razão. Mas outra parte precisa impedir que esse episódio se transforme em um pântano emocional. O ressentimento paralisa, envenena, prende. Ele nos acorrenta ao passado e nos impede de viver o presente com........
© Gazeta do Povo
