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O personagem mais lamentável de Lygia Fagundes Telles

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31.08.2025

Hoje quero falar sobre um sujeito esquivo, circunspeto, incompreendido. Um sujeito que, apesar de toda a distância, toda a diferença, parece me encarnar de alguma maneira, parece dizer coisas inesperadas sobre a minha vida. Alguém que acabo de descobrir e que, no entanto, me habita despercebido há anos, fundindo tempos e mundos dentro de mim. Como acontece com os bons personagens da literatura, sim, mas esse não é bom. Quero falar sobre o personagem mais lamentável de Lygia Fagundes Telles.

Por um tempo cultivei o intenso propósito de escrever uma biografia de Lygia, convém dizer. Já contei uma vez essa história, acreditando ter alcançado o seu fim, o desfecho inevitável que vem com a morte. Tinha pouco mais de vinte anos de idade, e aquela mistura de presunção e timidez que pode acometer os muito jovens. Sentia uma admiração imensa por essa mulher, e me pus a ler com avidez sua vasta obra, livro após livro que me surpreendiam, me encantavam. Queria escrever um livro próprio que a encarnasse de alguma maneira, uma biografia lírica em que vida e pensamento e ficção se fundissem, sem espaço para detalhes vãos ou pequenezas frívolas. Um dia então lhe confessei uma vaga intenção e fui bater à sua porta.

Ela me recebeu com um sorriso largo, o braço estendido me abrindo passagem, a simpatia que lhe era um atributo inescapável. Sentou-me numa poltrona acolchoada, me ofereceu um café que recusei porque não tomo, me ofereceu em troca um vinho do Porto. Pôs-se então a contar uma infinidade de histórias que eu já lera em suas páginas, e outras que conhecera em jornais, histórias que ela encadeava com algum automatismo e ainda assim preservavam seu frescor, soavam belas, nitidamente misteriosas. Falou da infância, dos primeiros escritos, dos tempos da faculdade, depois disso de uma profusão de personagens que a visitavam, que despontavam na bruma da tarde e exigiam ser narrados, imploravam por virar palavra. Lembro ter sentido veraz essa sua maneira de mistificar a escrita, lembro que........

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