Portugal não é um caso de sucesso
Portugal tem um governo em condições de governabilidade melhorada e vai eleger um presidente da república para uma sede vacante há 10 anos. A situação internacional, embora complexa é dito que pode beneficiar Portugal, um país periférico que se constituirá como reserva estratégica de uma Europa em guerra. Há uma expectativa optimista característica das épocas de mudança, quando tudo está demasiado mal e não é concebível que a mudança possa ser para pior. Mas também um lastro de pessimismo justificado pelo passado recente e com raízes na história remota.
Não é óbvio qual das atitudes perante o futuro é mais útil. Seguramente não é nenhuma delas em quantidade exagerada. Com menos segurança, pode ser dito que uma dose adequada de pessimismo realista será a que normalmente concita protagonistas mais úteis – só é passível de correcção o que é reconhecido como errado. O optimismo, sempre mais dado a atrair tontos e conformistas, é um sonho embriagado que, sobretudo se destituído de fundamento sólido, tende a conduzir ao fracasso.
1. Portugal é um país de sucesso, dizem
É neste ambiente de mudança que muitos homens bons procuram enaltecer as qualidades de Portugal, louvar o presente e persuadir o futuro. Fazem-no de uma maneira aguerrida, tanto que se fica com a sensação de que acreditam no que estão a dizer. É bom, parece ser bom. Mas não é, não é necessariamente bom. Às pessoas recomenda-se uma atitude positiva como forma de remendar uma saúde mental abalada – é um processo de auto-manipulação mental assistida que beneficiará o risonho sujeito de uma saúde emocional melhor e sucesso na vida. O mesmo tipo de discurso dirigido a um país é inútil, os países não reagem dessa forma. A insistência de alguns protagonistas no enaltecimento pasmado não está a resultar, Portugal não lhes deu razão – e a entusiástica recorrência nesse tipo de discurso inconsequente permite suspeitar um preocupante desvio maníaco. É possível durante algum tempo aguentar nas pessoas, colada com cuspo, a ideia de que o progresso existe, que as instituições funcionam e que a sua vida está melhor. Isso não tem sustentabilidade. O progresso e a confiança dependem de realidades materiais, são construídos em alegria, segurança e conforto. Em Portugal são cada vez mais escassas a alegria e a esperança, mais precárias a segurança e o conforto, em cada dia aparecem mais degradadas a educação, a saúde e a justiça. Portugal não é um país de sucesso. Insistir em espalhar esse boato é indecoroso, porque a mentira é indecorosa. E não tem qualquer utilidade. No caso, cada vez parecendo menos provável, de alguém pretender tornar Portugal um país decente, uma estratégia de louvaminhas é suicidária- não chama à razão, lisonjeia a mediocridade e adormece as vontades.
Marcelo Rebelo de Sousa teve o seu tempo de devaneio à volta da excepcionalidade portuguesa. Quis convencer o povo que uma medalha no salto em comprimento, heroicamente conquistada por um estrangeiro contratado para ser português, exemplificava a boa cepa lusitana. Pretendeu que uma vitória no double scull ligeiro só estava ao alcance de um povo de marinheiros, apesar de Portugal não conseguir uma equipa de 8 com timoneiro que é coisa de maior organização e sincronia. Deixou passar a ideia que uma vitória nos 50 metros mariposa reflectia uma habilitação única para sobreviver em caso de naufrágio… MRS beneficia há mais de 50 anos de uma reputação de brilhantismo folião. Enganou-se, porém, quando pensou que criar um país virtual era tão divertido como servir um jantar com vichyssoise de entrada. Acolitava-o, como um sacristão manhoso, António Costa – este muito mais responsável porque não tinha qualquer brilho nem leveza, apenas uma bacidez mortal com que sujou e corroeu. Os destinos de um e outro não são surpreendentes: MRS encontra-se hoje a penar numa solidão de entertainer a quem já ninguém acha graça, AC manteve o mesmo emprego mas serve hoje noutra freguesia. Portugal, ao serviço de quem os dois estavam, está mais pobre, mais ineficiente, mais hostil e mais inabitável.
2. Como ser tolo e incompetente ao mesmo tempo
É no presente estado de desmoralização, lixo e facadas na rua, que os optimistas tentam o seu melhor para apresentarem Portugal como um caso de sucesso. Incorrem em vários erros de método e de paralaxe.
Primeiro – Ignoram, omitem, não vêem que Portugal não é um país próspero nem, sequer, decente. Não há qualquer ângulo de visão que permita afirmar isso ou qualquer coisa aproximada. Esta é uma razão objectiva e que poderia ser única: Portugal não é um país de sucesso porque não é. Não é tautológico, está à vista.
Segundo – O esforço estrénuo de mostrar o sucesso de Portugal confunde-se cada vez mais com a vanglorificação da data de 25 de Abril de 1974. É uma perspectiva ruinosa de qualquer credibilidade porque não é honrado puxar ao sentimento em desfavor da objectividade. Não podem ser misturadas as emoções de um episódio dito de libertação, cada vez mais penosamente contado às crianças, com os resultados dessa libertação verificáveis por todos os adultos.
Terceiro – É usada, e cada vez mais, uma linha argumentativa que pretende fundamentar as qualidades do país actual por contraponto com os defeitos do país anterior a 1974. O julgamento do antigo regime tornou-se um refúgio de patriotas à procura de ilusões e de maraus que se habituaram a desculpas de mau pagador. Continua em uso a narrativa instituída por uma minoria de esquerda que saiu à rua em 25.04.74, rapidíssima e antes de todos, atrevida e descarada o suficiente para recorrer a expressões que lhe eram totalmente estranhas – liberdade, progresso e outras coisas boas.
Essa narrativa foi gritada desde a primeira madrugada e muito poucos lhe apontaram a inconsistência e os riscos. A maioria do “povo” cooptou-a, uma maioria que viria a ser chamada silenciosa e que então veio para as ruas com deslumbramento e grande ruído. Evocar um remendado para enaltecer um roto é de mau gosto e, como argumento, só pode ser considerado de recurso.
Desde essa primeira hora foi espalhada uma vulgata histórica, realmente uma para-história da II República (1926-1974), assente em dois pilares de tamanho modificado. O primeiro pilar, submetido a um tratamento de hipertrofia que foge dos números e dos contextos, releva a política repressiva do Estado Novo e sustenta-se de asserções propositadamente genéricas como “repressão”, “censura”, “tortura”, “assassínio” – que existiram mas que, pela omissão propositada dos números, se pretende que passem por homéricas. O segundo pilar, sujeito a um processo contrário de contracção e ocultamento, ignora a obra do Estado Novo – sem rigor histórico e fazendo uso da mesma falcatruação com que os 38 metros da Coluna de Trajano seriam reduzidos a 25 cm e os seus feitos limitados a uma sova ministrada a um velho com cataratas. A inovação criativa sobre a verdade, a que alguns chamam mentira, não é um método aceitável de provar coisa nenhuma.
Quarto – Foi feita uma obliteração do tempo, o tempo enquanto osso da história, o tempo onde os acontecimentos se unem e seguram. Não é possível passar por cima de 50 anos, os 50 anos mais extraordinários e férteis na história do mundo, como se meio século não tivesse um efeito obrigatório na evolução das nações. É intelectualmente desonesto comparar realidades ao longo de um período determinado, neste caso 50 anos, sem ponderar essa comparação comoutras realidades comparáveis e ao longo do mesmo período. Se isso não for feito apenas se está a avaliar o efeito inevitável da passagem do tempo que, no caso de Portugal, lhe proporcionou uma forte adubação pela integração no espaço político e económico da Europa.
3. Os estados da nação – os últimos 99 anos
São conhecidos os campos onde se avalia o sucesso dos países.
A Justiça. A paralisia da Justiça é a causa mais importante do estado calamitoso em que o país se encontra – uma paralisia que, na sua versão completa, deixa prescrever e não julga ou, numa variante mais relaxada, quando leis imperfeitas se combinam com agentes judiciários impreparados, julga mal. Outras matérias do estado podem parecer mais importantes – a saúde, porque afecta o bem estar de modo mais imediato, a educação para quem tem filhos na escola, a habitação… Não são. As entorses que minam a qualidade da saúde, da justiça ou das instituições, são possíveis porque há leis defeituosas e um regular incumprimento das leis que existem. A arquitectura legislativa portuguesa é caótica e necessita de revisão profunda, desde a Constituição até à mais miúda das milhares de leis que atravancam o funcionamento do país e o julgamento das causas.
O discurso optimista sobre o sucesso de Portugal ignora o estado da Justiça, tão lestamente como um gato foge da água. Os gerais casos de dilação, atraso e prescrição são os mais notados e têm alimentado na sociedade um perigosíssimo sentimento de incapacidade do estado em julgar e punir – antes de mais as grandes figuras do regime, mas também uma miríade de pequenos criminosos que todos os dias roubam, agridem e exploram o estado social. Menos notada é a incompetência legislativa da Assembleia da República, onde dezenas de cadeiras mudas votam leis formalmente viciadas, sujeitas a chumbos pelo TC ou inexequíveis por ausência de legislação complementar. Qualquer jurista suficientemente velho e competente se aperceberá com desespero da tremenda degradação da justiça – a justiça como um dos três sustentáculos da virtude social.
A saúde. O Serviço Nacional de Saúde é provavelmente a realização do 25 de Abril mais citada como marcador do triunfo da revolução. Continuar a dizer isso olhando para o........
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