Breviário para eleitores sem mais que fazer
O tempo dos grandes políticos não é este, não tem sido. Os países do mundo são hoje governados por personagens menores — mesmo os grandes países — e todos os dias se pode temer que de um deles caia uma decisão calamitosa. São dias tristes, estes, para quem está apegado a coisas simples como a agricultura, o bom-gosto e a verdade.
A história dos povos tende a ser obscura e é desejável que assim seja. Uma sociedade funcionando regularmente é silenciosa, move-se sem solavancos, parece perfeita como um organismo saudável. Mas não é assim, não é assim para sempre. Quando afectadas por uma convulsão inesperada (na verdade, quase sempre bastante expectável) as sociedades passam a sofrer de disfunções e irregularidades que nem sempre encontram solução em automatismos institucionais. Uma descontinuidade na trajectória social não é reparável pela transposição de modelos de uma época anterior para uma época nova. Pode ter sido uma guerra destrutiva ou apenas uma suave dissolução dos paradigmas que sustentavam a compreensão da realidade e o bem-estar – em nenhum dos casos é possível reconstruir o futuro com as pedras do passado. Nessas alturas, todas as tentativas de reacerto com recurso aos antigos modelos – corroídos pelo tempo, usados por hábito e sem questionamento porque considerados estádios evolutivos últimos e perfeitos – não resulta e tende a agravar as crises.
O mundo atravessa um desses momentos. Uma época que parecia interminavelmente dourada vai terminar, como terminaram outras. Em Portugal é possível observar com especial detalhe como um edifício que parecia sustentável se transforma em papa intestinal, como se desfaz uma sociedade e o regime que a tutela. Não é mais obscena a visão de perto que Portugal oferece, mas incomoda mais, porque em Portugal conhecemos mais pessoas – e a maior parte delas têm um grau de notoriedade que já há muito as projectou para a categoria dos tipos conhecidos de gingeira.
O principal factor de descontinuidade nas sociedades humanas é a modificação dos valores. O facto de apenas o Homem ser capaz de produzir essa modificação, que funciona como uma reinterpretação do que é importante e tem significado vital, foi a razão para a sua rapidíssima história evolutiva. O facto de outras sociedades vivas não terem (ainda…) desenvolvido essa capacidade de especular sobre valores faz com que a sua história seja apenas adaptativa, não proactiva — e, como os dinossauros e o lobo da Tasmânia lamentariam se pudessem, uma existência sempre exposta aos meteoros e à estupidez do homem. Os progressos obtidos nos últimos 2.5 milhões de anos, uma fracção infinitesimal da história do universo, não resultaram de um devir histórico inevitável, inscrito pela vontade do Deus criador no íntimo da vida nem colado pelo materialismo histórico na testa do tempo, como um post-it. As grandes transformações no pensamento e na política, na ciência e na técnica, necessitaram de uma reformulação dos valores, eventualmente permitida por modificações do ambiente material, mas apenas eles geradores de clivagens. Não era concebível a sobrevivência e expansão do pensamento cristão, privilegiando determinantes emocionais do comportamento como o amor ou a compaixão, se as recorrentes soluções bélicas não tivessem levado a sociedade judaica a uma tensão irresolúvel com Roma e entre as inúmeras seitas locais. E foi preciso que vários homens tivessem pensado nisso e propusessem à sociedade mudar. Jesus, um rapaz com família na Nazaré, mas interessado em mais visibilidade, inevitavelmente Jerusalém, foi o mais bem sucedido de todos eles e o que ficou mais conhecido. Outros períodos de descontinuidade histórica radical tiveram os seus protagonistas — Alexandre, Lutero ou os pensadores do que viria a ser a Revolução Francesa. As condições que permitiram a sua emergência transformadora estavam presentes nas sociedades há muito, e continuariam, embora já confrontadas com o pensamento que as contestava. A fragilidade dos fundamentos sociais estava presente, mas foi necessário que uma determinação humana se impusesse ao marasmo evolutivo. Todos esses momentos transformadores originaram sequências mais ou menos longas de desespero e episódios violentos, exactamente porque eram valores que as pessoas eram solicitadas a mudar — e os valores são muito mais estruturantes e de difícil prescrição do que os bens materiais.
Outros momentos menos globais, mas obrigando a transformações com radicalidade e níveis de exigência igualmente muito........
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