Perceções e ameaças
Uma das mais fascinantes histórias do Livro do Génesis é aquela que descreve a origem da diversidade dos povos e das línguas. Quando, após o dilúvio, os homens se propuseram construir uma torre “cujo cimo atinja os céus” (Gn 11, 4), o Senhor desceu e confundiu “de tal modo a linguagem deles que não [conseguiam] compreender-se uns aos outros” (Gn 11, 7), levando a que a construção da cidade fosse suspensa.
São apontadas diferentes interpretações para estas linhas: teria sido um castigo pela tentativa de escapar a dilúvios futuros que o Senhor tinha prometido que não se repetiriam (Gn 9, 11)? Ou seria uma lição divina para que os homens aprendessem que há limites para os seus projetos (Gn 11, 6)? Ou será apenas uma narrativa etiológica para justificar a existência de diferentes povos e diferentes línguas?
A verdade é que Deus tinha dito a Noé e seus filhos: “sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela” (Gn 9, 7) e isso não seria possível se se mantivessem reunidos na mesma cidade. É a incompreensão que resulta das diferentes línguas que os faz abandonar a cidade de Babel e dispersar por toda a Terra.
Pieter Brueghel, o Velho, A Torre de Babel (séc. XXI)
Com a dispersão multiplicam-se também as figuras divinas, até ao “nascimento” do monoteísmo bíblico, como o Pe. Francisco Martins descreve em A Bíblia tinha mesmo razão?. Mas esse povo escolhido que torna Yahvé o único Deus verdadeiro assenta numa identidade étnica e geográfica que só aos poucos se vai transformar:
“é no contacto com a cultura grega e, em larga medida, graças a um processo de sinergia cultural que a ideia de pertença ao povo de Israel, isto é, de ser “judeu”, vai superar o horizonte meramente geográfico ou genealógico.”
A universalidade da mensagem cristã, que na Nova Aliança “restabelece no Pentecostes a unidade de linguagem que se tinha desfeito com Babel” (At 2) e que São Paulo concretizou, acontece assim num contexto cultural e político muito distinto: após Alexandre e o domínio macedónio, no contexto de uma filosofia moral grega de cariz essencialmente universalista e em pleno império romano. Terá estado, nesse sentido, a fecundidade da mensagem cristã dependente do........
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