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A grande rutura

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25.02.2025

Uma das regras de pensamento dos nossos dias parece ser a de que não devemos dizer “no nosso tempo” – como se a expressão convocasse, de imediato, o desmérito do argumento. Afinal, vivemos objetivamente tempos melhores: para quê dizer, então, “no nosso tempo”? Ainda assim, vou desafiar a regra com a convicção de que a possibilidade de comparação com “o nosso tempo” é uma das (poucas) vantagens da passagem do tempo. Ou, como se dizia numa telenovela brasileira há muitos anos, Deus pode ter-nos dado rugas, mas também nos deu experiência. E é essa experiência que nos permite interpretar o desaparecimento de alguns comportamentos do passado como o sintoma dos males do presente.

É o que acontece quando nos recordamos da tradição praticamente abandonada de pedir boleia. Acreditarão os mais novos que isto acontecia mesmo? Homens de todas as idades (a questão das mulheres é mais complicada) ficavam na estrada com o braço estendido e o polegar em riste, por vezes segurando cartazes que indicavam o local para onde queriam ir, e os carros paravam e davam boleia. Muitas vezes, as pessoas eram conhecidas, eram da terra, e isso facilitava a confiança. Outras vezes, não. Mas como os transportes públicos eram uma raridade e o carro pessoal era ainda mais raro, muitos dependiam desta arte para se movimentarem. (Quantas vezes apanhou boleia o meu pai quando vinha de Coimbra para a terra?)

Para usar a expressão que Francis Fukuyama apresenta no livro A Grande Ruptura, esta instituição era sinónimo de “capital social”: simbolizava a existência de confiança social como “subproduto de normas partilhadas de comportamento ético”. A grande rutura traduziu-se na perda deste capital social e seria resultado da passagem para uma era pós-industrial ou da informação, cujo impacto é comparável tanto com a passagem das sociedades de coletores-recoletores para as sociedades agrícolas, como com a passagem das sociedades agrícolas para as sociedades industriais.

Fukuyama localiza esta transformação entre os anos de 1960 e o início da década de 1990, recorrendo a dados que revelam mudanças........

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