É a série Adolescência sobre incels?
É talvez o legado mais importante do pensamento de Umberto Eco: a ideia de que a obra de arte se encontra em aberto e de que um livro, uma pintura, um filme ou uma série podem ser interpretados de diferentes modos. É até possível defender que a qualidade do produto artístico está diretamente dependente da pluralidade de leituras que permite. Nessa pluralidade, a intenção do autor torna-se quase irrelevante, mesmo quando a obra visa não só produzir uma experiência estética, como despertar uma discussão pública.
Jack Thorne, criador de Adolescência, procurou dar um contexto ao seu trabalho afirmando que a série é sobre a manosfera e os perigos do conteúdo incel. E como o nosso contexto cultural se encontra marcado pela ideia de masculinidade tóxica e vitimização feminina, a discussão tem-se limitado a esses termos. Mas, para quem se dedica ao estudo das lutas culturais das últimas décadas, a série permite, felizmente, pensar em muito mais do que isso.
Consideremos o terceiro episódio, quando percebemos que a interação entre Katie e Jamie se inicia em resultado de uma foto íntima de Katie ter circulado entre os alunos da escola – uma foto íntima (nome técnico, nude) enviada deliberadamente pela jovem. Não deixa de ser surpreendente que uma sociedade que tem retardado progressivamente a entrada no período adulto, esteja simultaneamente a comprimir o período de infância. Em que mundo é normal uma menina de 13 anos enviar uma nude a um rapaz?
Para quem acompanha aquilo que está a acontecer no mundo digital, a palavra normal assume o sentido de trivial. Numa sociedade marcada por ideias de sex positivity (otimismo sexual? o termo não está cunhado em português), a sexualização está a acontecer cada vez mais cedo, com as meninas sujeitas a uma cultura que as faz acreditar que o empoderamento das mulheres passa fundamentalmente pelo sexo.
As feministas radicais recordam-nos que essa é mais uma estratégia do mercado para distrair as mulheres: enquanto andam ocupadas em “libertarem-se sexualmente”, não estão preocupadas com os verdadeiros centros de poder. Mas as feministas conservadoras (nomeadamente as que tenho designado, na senda de Mary Harrington, como feministas reacionárias) são particularmente críticas desta des-sacralização do sexo, considerando que uma cultura do engate (hook-up culture) é prejudicial para as mulheres: não só está em desarmonia com a nossa natureza,........
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