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Sudoeste

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11.07.2025

O meu Alentejo, e chamo-o de meu do mesmo modo como trato o meu braço direito, foi nascendo muito antes de eu sequer imaginar o que viria aí. Começou, penso eu, com o meu irmão mais velho que, partilhando o mesmo primeiro nome próprio que eu, e sendo grande, maior mesmo que o nosso Pai, com o meu nascimento ganhou a alcunha de Nunão. Já eu, por oposição, nasci Nuninho e, por maior que fosse ficando, assim continuei. Cresci em Cascais, a ver o mar, isolado na encosta da Serra de Sintra, na casa, como o meu Pai costumava dizer, “mais perto do mar”. Tirando um vizinho mais ou menos da minha idade que, tendo os pais separados, aparecia ao fim de semana, como amigos e companhia, tinha quatro cães, uns pastores alemães enormes, mas brincalhões, pachorrentos com a criançada, em particular comigo que viam como uma espécie de equivalente humano.

Nesse tempo, o meu irmão Nunão, o filho mais velho do primeiro casamento do meu Pai que vivia em Amesterdão, na Holanda, vinha todos os anos passar umas semanas connosco, tanto no Verão como pelo Natal. Para mim, desde que me lembro de vir a este mundo, eram as melhores alturas do ano. O meu irmão não só trazia sempre um qualquer reforço para o meu equipamento futebolístico — bolas, luvas de guarda-redes, caneleiras, meias, chuteiras, etc. — como também se prestava a jogar à bola comigo, substituindo os muros contra os quais, sempre trajando a rigor, eu normalmente tabelava a bola em geniais passes rasgados. Paciência do meu irmão, prazer o meu, alívio dos cães que, doutro modo, à falta de companhia, eu fintava, rabiava e por cima dos quais fazia saltar a bola, sem que, entre bocejos, percebessem a complexidade dos enredos de conquistas gloriosas nos quais participavam, como adversários, mesmo que indirectamente — tirando, naturalmente, quando o esférico acertava nos desgraçados.

A casa, grande e em parte normalmente vazia, nessas ocasiões em que o Nunão vinha visitar e ocupava o “quarto lá de baixo”, ganhava uma vida familiar à qual eu não estava habituado tendo-me gerado, em particular no Natal, impressões ainda hoje tão vivas quanto as centenas de memórias guardadas nos álbuns — aqueles em que se tinha que enfiar os cantos das fotografias nuns fugidios triângulos de plástico — que guardo ainda aqui na biblioteca, numa prateleira reservada especialmente para esse efeito. E o mundo assim girou, na sua tranquila e repetitiva normalidade, durante a maior parte da minha infância.

Em 1988, tinha eu dez anos, o mundo mudou. O Nunão, depois de visitar uma amiga exilada no Sudoeste alentejano, ali para os lados do Cercal, decidiu que seria boa ideia comprar um velho monte vizinho que, incorporando uma taberna, um mini-mercado e algumas dependências agrícolas, estava para venda. A ideia, original à época, era transformar o monte naquilo que hoje se chama um turismo rural, mas que, na altura, fruto da novidade, ainda não tinha nome. O meu irmão, creio eu, foi o pioneiro nessa actividade que agora por aqui abunda e que consiste numa das forças económicas da região.

Mas naqueles dias ainda não era assim. O Alentejo litoral mantinha grandemente o seu carácter inóspito, em muitos casos de abandono, povoado por pequenos montes onde a taipa, encarniçada, esburacada, se misturava com a cal e o tijolo mais moderno, muitas vezes à vista, criando barracas, a maior parte das quais sem casas de banho, espalhadas pelos campos e servidas por poeirentas estradas de “caminho velho”, ou seja, terra batida. Os aglomerados eram pequenos, “levantados do chão” com actividade centrada na taberna, no mini-mercado, ou no posto dos correios, local onde, invariavelmente, residia também o telefone, sendo que em muitas ocasiões um estabelecimento apenas acumulava todas as funções — no caso das Casas Novas, era a venda da D. Guiomar. Fechados dentro das casas e tabernas, de janelas pequenas quando não limitados aos postigos das portas de madeira antiga queimada pelo sol, o refúgio face ao frio húmido no Inverno ou o calor seco no Verão, enfiava os nativos naqueles casulos sombrios, fechados, claustrofóbicos, que, junto com o copo de tinto, a média de cerveja e o tirinho de aguardente de medronho vendidos ilegalmente, os protegiam dos caminhos desertos e poeirentos.

Nas aldeias e vilas já maiores, a coisa era diferente. Em redor das praças centrais, ponto de encontro onde, normalmente, paravam os autocarros, os mais empreendedores, sem qualquer certificação da ASAE, abriam esplanadas e toldos onde serviam bifanas, pregos e sandes, sempre devidamente acompanhadas de vinho a copo, ou cerveja fresca. Aí, a vida social saía do negrume escondido para a claridade do dia, das trevas para a luz, revelando toda uma sociedade pobre, mas cuidada. Eles, de boné, casaco quadriculado de lapelas com dois botões, camisa e gravata; elas, de aventais e batas coloridas, cabelos muitas vezes curtos, ou pelo menos apanhados, isto as mulheres de meia idade. Já as mais velhas, essas........

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