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Processo revolucionário em curso

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30.05.2025

Segundo Herder, outrora, os homens eram todos, completos, multi-dimensionais na medida em que, dentro de cada família, ou clã, se exigia que uma grande multiplicidade de tarefas fossem feitas simultaneamente pelas mesmas pessoas: os pais, por exemplo, além de maridos, eram também gestores, agricultores, guerreiros, membros dos corpos políticos da comunidade, empreiteiros e, em muitos casos como nos mais educados, igualmente poetas, filósofos, legisladores, músicos, matemáticos, cientistas, etc., etc.. Em particular, o homem virtuoso era educado para ocupar-se de todas essas artes e tarefas. Nesses tempos antigos, Herder argumenta, havia unidade, não apenas cultural entre os povos, mas, fruto dessa multi-dimensionalidade, também entre a teoria e a prática dentro das próprias pessoas, entre homem e cidadão, uma unidade que a divisão do trabalho do mundo moderno, entre outras coisas, veio destruir. Desde aí, depois da mecanização, da especialização, da divisão técnica, qualitativa, os homens tornaram-se, diz-nos ainda Herder, “metade pensadores e metade sentidores”, isto na medida em que só se pode sentir de facto aquilo que se faz, e aquilo que se faz, progressivamente, se reduziu cada vez mais a um pequeno nicho de especializada dedicação — especializada a prática da vida a uma pequena função, tudo o resto passa a ser teoria.

Há aqui, observa Herder, e parafraseando-o, algo de profundamente errado, pois que se tornou a sociedade moderna num aglomerado de moralistas que falam, mas não agem, de poetas épicos que cantam grandes feitos, mas que nada experimentaram de verdadeiramente heróico, de grandes e inflamados oradores que nunca fizeram nada a não ser discursar ou, num exemplo mais concreto, em arquitectos que, mesmo desenhando o pormenor do ladrilho de uma cozinha e a medida da torneira de segurança, na vida real, nunca fizeram massa, nunca assentaram tijolos e não conseguem de facto construir nada — nem sequer alisar reboco e estuque. No fundo, abriu-se o caminho a uma forma inconsciente de hipocrisia, senão mesmo devaneio, na medida em que, entre outras coisas, e também no mundo mais político, aumenta a distância que vai entre a palavra que se diz, pensa, ou escreve, e a consequência daquilo que se disse, pensou e escreveu.

Ao mesmo tempo, há uma crescente desresponsabilização, ainda para mais generalizada e socialmente transversal. Num exemplo prático, veja-se como o político, ou o comentador, pode ser um orador brilhante, pode exortar na TV todo um povo a levantar armas, a partir para a guerra, mas não deixa também de ser verdade que o trabalho da guerra é coisa para militares — historicamente tanto mais à frente da batalha quanto menos importância, poder ou dinheiro tiverem —, o que gera uma distância de segurança muito grande entre o à vontade com que o político ou comentador belicista brada pela luta, e o conforto do facto desse mesmo político, mesmo que inconscientemente, saber que nunca terá que travar qualquer tipo de combate. Era outro mundo, convenhamos, quando o líder político que chama o povo ao combate seria também ele o primeiro na linha da frente. O mesmo se passa por todas as cambiantes da vida social especializada, uma vida onde a responsabilidade dos actos se encontra mitigada numa infindável cadeia de comando em que apenas os elos mais fracos e rasteiros lidam com as consequências das decisões — e mesmo estes com o alívio próprio de se saberem completamente a alheios a qualquer tipo de responsabilidade........

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