Procuram-se vítimas; dão-se alvíssaras
A extrema-esquerda portuguesa e a europeia andam à procura de «vítimas». Necessitam delas como de pão para a boca. Não podem viver sem elas. E até dão alvíssaras a quem as encontrar. É que as «vítimas» vão sendo cada vez mais raras. O antigo proletário aburguesou-se e passou a integrar convictamente a classe média; o trabalho modificou-se profundamente e já não se faz em barracões insalubres a doze horas por dia, nem na presença constante do capataz de confiança do patrão; o braço operário foi digitalizado e a redistribuição dos rendimentos é uma evidência económica que ninguém se atreve a negar; as mulheres já não são hoje felizmente discriminadas como outrora, a igualdade social é cada vez mais evidente; os povos (ex) colonizados estão há muito entregues ao seu próprio destino porque o têm em suas mãos, como justamente pretendiam; o antirracismo é hoje um dado ético adquirido; a imigração é bem-vinda desde que não anárquica; e a homossexualidade é hoje quase um benefício. As clivagens de classe, credo, rendimento, sexo, raça, pobreza, orientação sexual e outras estão felizmente a atenuar-se. Não tão depressa como seria desejável, mas estão. E a que se deve isso? À luta esquerdista? Ou à avançada racional e ética que a democracia liberal ocidental proporcionou, porque só ela a podia proporcionar?
A luta das esquerdas foi certamente importante para chegar ao que se chegou, mas o papel principal fica a dever-se à lucidez, à exigência ética e ao bom-senso das forças vivas da sociedade civil, e de uma vida política muito mais inclusiva. Contrariamente ao que o marxismo apregoava, a sociedade civil não é um bloco homogéneo e inamovível. Os seus interesses não são inteiriços e as ideologias que lhe correspondem souberam adaptar-se à realidade. A dialéctica também existe na sociedade civil e não é apenas de oposição entre contrários, como pretendia a futurologia marxista, presa a uma visão apoucada do desenvolvimento histórico. E este faz-se mais por assimilação do que por oposição. O capital adaptou-se bem, absorveu crises, erradicou a pobreza que, em última análise, lhe não interessava, lançou fora ideologias retrógradas e desfez-se de preconceitos religiosos e metafísicos, e tudo isto sem pôr em causa a democracia política e os direitos individuais, pelo contrário. Melhor na história nunca se viu. E se a maioria dos antigos países comunistas está hoje na rota do desenvolvimento e da democratização, naturalmente que com escolhos e dificuldades, em larga medida a ele o devem.
Mas tudo isto tem um preço. É o da sociedade civil aberta, fluida e móvel em que hoje vivemos, sem narrativas dominantes, tendendo a ser fragmentada e dividida cada vez mais em minorias afastadas umas das outras. É um facto. Já aqui falei disto. Tentar encaixá-la como o esquerdismo quer em compartimentos definidos e irredutíveis é profundamente estúpido. Não há claramente «vítimas» oprimidas de um lado e opressores do outro. Há certamente franjas da sociedade em busca de reconhecimento num mundo instável e em movimento, mas o caminho empreendido não é de vida ou de morte, nem de aniquilamento, é uma demanda por trilhos ínvios, mas uma demanda e não uma luta entre forças opostas como na simplicidade marxista. As fricções resultam da presença de poderes diluídos, por vezes ásperos e até irracionais, mas de tão sujeitos a escrutínio como hoje estão e sem valores transcendentes em que se fundamentem, não duram muito tempo.
Incapaz de compreender esta realidade, a esquerda marxista anda à procura de sintomas da «opressão», quanto mais melhor para com eles compor o ramalhete da «luta». A esquerda hoje é vitimológica. Mas logo que, toda satisfeita, lá consegue descortinar, a custo, algumas «vítimas», logo elas tendem a diminuir, absorvidas pelos equilíbrios que a sociedade actual consegue........
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