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O Medo

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19.03.2025

Foi guiado pelo medo que o homem primitivo fugiu aos perigos da savana. Foi condicionado por esses alertas que hominídeos de há milhões de anos deixaram de ser presas e lentamente se elevaram ao estatuto de caçadores. Foi uma evolução lenta, resiliente, arrastada nos éons, uma evolução só possível pelo medo e a resposta biológica que despertava. Uma resposta que umas vezes surgia na presença do perigo, outras, apenas pelo receio do desconhecido. Sem medo há muito que teríamos sucumbido na savana.

Este medo inicial era uma emoção, um instinto. Porém e se o medo no início tinha estas características e dele dependíamos, durante o processo evolutivo, e enquanto crescíamos como espécie, a nossa relação com o medo também se modificou. Algures durante este processo e enquanto o homem desenvolvia características cognitivas que o distanciaram das outras espécies, também a sua relação com o medo evoluiu e deixou de ser um exclusivo do mundo das emoções. Este novo medo era um sentimento forjado na racionalização das emoções. Se o medo emoção nos afastava ou antecipava os perigos, o medo sentimento dar-nos-ia outras ferramentas. Auxiliou e incentivou-nos à resiliência e a não fracassar, facilitou a vida em comunidade e a procura do apoio por entre pares. Quando bem orientado este medo tornou-se uma ferramenta importante na demanda do sucesso e da felicidade. Era um medo que ao perder a irracionalidade dos instintos foi moldado pela experiência, pelas crenças e o pensamento lúcido. Foi uma forma de medo que se manifestava como um sentimento estruturado e persistente.

Porém, e em algumas situações do domínio do patológico, este medo temporalmente mais longo ao possuir um pendor para a cronicidade poderia perder a racionalidade e a incrustar-se de novo como uma nova emoção. Este novo medo, ressurgido do medo racional crónico, é o estado emocional que reconhecemos nos regimes autoritários e em muitas franjas da sociedade onde alguns comportamentos resultam, não da racionalização de um qualquer facto em particular, mas de uma irracionalidade que se autoalimenta e cresce por entre a sociedade. É uma nova emoção que medra na sociedade e nos limita mesmo na ausência visível de uma qualquer mordaça.

Este é um medo mais elaborado, um medo com origem em sentimentos mas irracional como as emoções. É o medo usado como ferramenta social e política, uma ferramenta comum de domínio e controlo em regimes autoritários, mas também visível por entre pequenos poderes, os de personagens menores que por via de tiques autoritários que lhes consentimos, permitimos que das sombras controlem as nossas vidas.

O medo enquanto sentimento molda a perceção que temos do exterior, a nossa identidade e enquanto armadura do nosso comportamento foi sempre uma característica essencial da condição humana. E vários são os autores que têm refletido sobre a sua génese e significado.

Para Kierkegaard (1813 – 1855) o medo originava sempre uma resposta dirigida em torno de um objeto concreto, essencialmente, um perigo físico. Diferente, para ele, era o “medo emoção”, um medo que descrevia como dependente de estímulos interiores. Kierkegaard designava este último de “angústia” e caracterizava-a como uma forma de medo que se expressava como uma emoção, mais ou menos racionalizada, e que surgia ligada a “estímulos” menos tácteis como os relacionados com a liberdade ou o “vazio interior”.

Heidegger (1889 – 1976) faria semelhante distinção. Em o “Ser e Tempo” reconheceu o medo como uma reacção contra algo de específico, enquanto as outras formas de “medo”, as sem objecto, as identificava como angústias ou temores.........

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