Populismo Libertário no Desporto: a nova ideologia
Nos últimos anos, tem-se vindo a consolidar em Portugal uma nova orientação ideológica no domínio das políticas desportivas, marcada por uma retórica de liberdade, autonomia e rejeição da intervenção estatal estruturada. Este populismo libertário, travestido de “diálogo estratégico”, promove uma visão do desporto desvinculada da responsabilidade pública, favorecendo interesses corporativos, decisões informais e ausência de escrutínio. O presente texto analisa os efeitos desta deriva ideológica, os seus fundamentos simbólicos e institucionais, e as consequências para o desenvolvimento desportivo num país caracterizado por desigualdades profundas e fraca participação da população na prática regular de atividade física e desportiva.
Populismo libertário e suas derivas
Esta deriva ideológica, assente num discurso que apela à liberdade, à autossuficiência e a um olímpico “bom senso popular”, configura uma espécie de estado natural imaginário, onde as decisões se tomam por aclamação e os plenários substituem o estudo dos problemas, a racionalização das escolhas, os processos de tomada de decisão e o planeamento estratégico que é, por natureza, uma competência da administração pública e não de qualquer agência privada de serviços. A própria execução das políticas, nesses termos, inaceitavelmente, deixa de ser monitorizada pelos poderes administrativos do Estado, abrindo espaço à informalidade e à desresponsabilização.
Emergência de uma nova lógica política no desporto
O associativismo desportivo nacional tem vindo, de forma subtil, mas progressiva, a adotar uma lógica marcada por um populismo libertário de feição unicitária. Este fenómeno, que, sob o epíteto de “diálogo estratégico”, se tem vindo a consolidar ao longo das duas últimas décadas, traduz-se num confronto subterrâneo com a estrutura político-administrativa do Estado, realizado à revelia de uma ética de autenticidade e em clara desconformidade com os princípios fundacionais do Movimento Olímpico, com a lógica do Modelo Europeu de Desporto e com a visão holística subjacente ao Desporto para Todos.
E, enquanto Ministros, Secretários de Estado e Diretores-Gerais se sucedem ou caem em desgraça, o dirigismo desportivo nacional permanece intacto, indiferente a uma clara alternância democrática, impermeável à crítica, e cada vez mais consolidado como poder autónomo dentro do próprio sistema político.
Em conformidade, ganhou confiança e, hoje, o discurso dominante passou a afirmar, como se de uma evidência moral se tratasse, que cabe ao Estado garantir os financiamentos públicos necessários para acompanhar a ambição das federações desportivas ou, mais precisamente, dos seus dirigentes. E não se trata aqui do velho dirigente desportivo que, por esse país fora, de “baliza às costas” e contra todas as incongruências político-partidárias, continua, nos pequenos clubes, regra geral, esquecidos nas grandes decisões estratégicas engendradas em Lisboa, a manter o desporto a funcionar.
Os Comités Olímpicos Nacionais e a ilusão da supremacia
Nas democracias liberais, e de acordo com a própria Carta Olímpica, nenhum Comité Olímpico Nacional (CON) — ou sequer o Comitato Olimpico Nazionale Italiano (CONI), cuja génese está ligada ao regime fascista — se deve arrogar o estatuto de entidade máxima do desporto nacional, nem tampouco o de representante legítimo das federações junto do poder político, tanto mais que, na estrutura orgânica dos próprios CONs, as federações desportivas ocupam posições estatutárias diferenciadas, sem qualquer subordinação hierárquica formal.
O mérito desportivo é, neste enquadramento, invocado como justificação para a concentração de recursos, mesmo quando esta contraria os princípios da equidade e do interesse público na base do sistema desportivo. Quando, na verdade, se algum mérito existiu nos últimos anos, ele foi dos atletas, das famílias, dos treinadores, dos clubes e, eventualmente, até das próprias federações. Salvo uma ou outra exceção, as demais estruturas orgânicas, umas por disfunção vocacional, outras por manifesta incapacidade para definirem e esclarecerem a singularidade da sua missão, em matéria de mérito, têm servido mais para desorientar e confundir do que para organizar e orientar, como se comprova pelas opções estratégicas.
Política desportiva e justiça social
A racionalização das decisões em matéria de política desportiva não passa seguramente........
© Observador
