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Uma história de namoro, casamento e divórcio

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14.06.2025

No seu testemunho Ana conta-nos como a alienação e os maus-tratos psicológicos podem começar de forma insidiosa ainda no namoro, antes mesmo de existirem filhos ou de ser formalizado o casamento. Ana foi objeto de abuso emocional encoberto, um padrão de comportamento no qual a vítima é gradualmente manipulada, silenciada ou desvalorizada, ao ponto de normalizar condutas que, em contextos saudáveis, seriam inaceitáveis. Este testemunho é um exemplo claro de como o abuso não começa, na maioria das vezes, com violência explícita, iniciando-se de forma subtil, normalizando o desrespeito, e construindo o caminho para dinâmicas futuras mais destrutivas, incluindo a alienação parental: “Durante 10 anos, eu e o meu ex-marido mantivemos uma relação de namoro, a qual foi pautada por vários episódios de discussão, durante os quais (possivelmente em resultado de alguma imaturidade) nunca valorizei as atitudes menos corretas que este tinha para comigo, nomeadamente: berros, empurrões, imposições de saída do carro em plena estrada, envio de mensagens anónimas, perseguição insidiosa e obsessiva (“stalking”)”. Durante o namoro, as manifestações de controlo, como os gritos, os empurrões ou a imposição de sair do carro em plena estrada, já eram comportamentos claros de violência psicológica, o que, muitas vezes, por falta de conhecimento, por amor idealizado ou por mecanismos de negação, vítimas como Ana não reconhecem como sinais abusivos.

Esta alienação iniciou-se por um ciclo típico de isolamento estratégico, em que Ana não foi apenas afastada emocionalmente da sua rede de apoio, mas também deslocada fisicamente e financeiramente para o centro de um sistema de controlo. Ana partilhou-nos a estratégia de isolamento emocional utilizada pelo seu namorado para desqualificação da sua família. Este comportamento abusivo visou diminuir o valor da família de Ana, procurando quebrar os laços afetivos que poderiam servir de suporte à sua resistência: “Para além disso, já se começava a denotar alguma tendência para o enaltecimento da sua família em detrimento da minha, o que foi sendo consentido por mim”.

O avanço silencioso da alienação verificou-se à medida que o relacionamento de namoro evoluiu para o casamento. O padrão já identificado de desvalorização da família de Ana assumiu contornos cada vez mais estruturados e irreversíveis. A mudança geográfica para perto da família do namorado, aliada à sua integração no círculo profissional deste, trabalhando na sua empresa de família, inseriu a Ana num território completamente dominado pelas relações e pela influência do parceiro. Nesse ambiente, cada gesto, decisão ou opinião de Ana passou a estar sujeito à vigilância, à sua crítica velada ou à interferência direta. Gradualmente, ela foi sendo cercada, não apenas no plano afetivo, mas também no económico e no social. O seu espaço de autonomia foi reduzido e substituído por uma lógica de controlo coercivo, que gerou uma dependência sistémica. Esta situação, aparentemente naturalizada sob a forma de “proximidade familiar” ou “vida partilhada”, escondeu, na verdade, um processo de alienação relacional progressiva. Como nos partilhou a Ana: “já licenciada como professora do 1.º Ciclo (…), tive a oportunidade de ocupar uma vaga na empresa da família do meu ex-marido, pelo que me mudei (para longe da minha família). Decorrido um ano, decidimos casar e assentar morada (…), onde vivia toda a sua família. Logo aí, o afastamento da minha família aumentou gradualmente em contraste com a aproximação da sua, em resultado das esferas pessoal e profissional estarem confinadas às mesmas pessoas (mãe, tio, irmã e cunhado deste)”.

Quando nasceu um filho, acentuou-se o controlo e deu-se o início da alienação parental. Após três anos de vida em comum, Ana e o namorado decidiram constituir família, uma decisão tomada, segundo ela, com mútuo consentimento: “Ainda assim, ao fim de três anos de vida em comum, decidimos (com mútuo consentimento) constituir família. É neste contexto que, (…) nasceu o João (…). Com o nascimento do filho João. deu-se uma mudança silenciosa, mas profunda na dinâmica familiar, em que o controlo que até então recaía sobre Ana enquanto mulher e namorada, passou então a incidir sobre ela enquanto mãe, assistindo-se a uma deslegitimação da figura materna: “o pai decidiu controlar tudo o que dizia respeito à sua educação e cuidados primários, em estreita ligação com a sua mãe (avó paterna do João), a qual era vista como um autêntico “guru da educação”, e sem a qual nenhuma decisão era tomada.” A figura da avó paterna, colocada num papel quase místico (“guru da educação”), reforçou o mecanismo da sua exclusão: todas as decisões passaram a ser tomadas num núcleo fechado de controlo, entre o pai e a avó paterna, deixando a Ana num lugar periférico e simbólico (e praticamente) invisível na vida do próprio filho, como nos contou a Ana: “Assim, o João sempre foi educado numa redoma de vidro, onde ninguém, à exceção da família paterna, podia aceder”.

A mãe estava presente, mas era impedida de exercer a sua maternidade, por ser vítima de alienação através do controlo dos momentos espontâneos. Apesar do afastamento progressivo e do controlo crescente exercido pela família paterna, Ana nunca deixou de assumir a sua função materna. O seu testemunho revela o esforço contínuo para manter-se presente e cuidadora: “Eu, enquanto mãe do João, jamais estive ausente da sua vida e nunca deixei de acompanhar as suas rotinas ou de providenciar tudo o que ele necessitava”. No entanto, a sua parentalidade era vivida sob um regime de vigilância e autoridade. Mesmo estando próxima, trabalhando na mesma empresa da família paterna, não lhe era permitido exercer livremente a maternidade, sobretudo nos momentos quotidianos e espontâneos fundamentais para a construção do vínculo afetivo: “Ainda assim,........

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