A propósito da RTP e do “tempo para pensar”
O episódio de uma série transmitida pela RTP2 (Sex Symbols) provocou indignação, mas a reacção perante a normalização estatal de que ser transgénero “é simples” e puramente mental — como se o resto do organismo fosse um mero invólucro — peca apenas por defeito. É especialmente crítica a parte em que uma das personagens explica que toma hormonas para travar a puberdade e que mais tarde logo decide porque “ainda tenho que pensar”. Nesta fala cândida, a RTP vende a crianças e adolescentes a perigosa falácia das hormonas que dão “tempo para pensar”. O que a fala do desenho animado não disse (nem a RTP) é que a esmagadora maioria das crianças colocadas nessa “pausa” – que, no fundo, consiste em bloquear o processo de desenvolvimento natural do organismo durante a puberdade – provavelmente nunca mais se livra da espiral da medicalização, acabando encaminhada para tratamentos com hormonas do sexo oposto (ou “hormonas cruzadas”) e cirurgias, muitas vezes com consequências irreversíveis para a saúde.
Tempo para Pensar é justamente o título do livro em que a jornalista Hannah Barnes expôs o escândalo que levou ao encerramento do então maior centro do mundo dedicado a problemas de identidade sexual, o Gender Identity Development Services (GIDS) da clínica Tavistock, em Londres. Neste centro, durante mais de dez anos, administraram-se hormonas bloqueadoras da puberdade às crianças e adolescentes que começaram a chegar em catadupa para lhes dar “tempo para pensar” se queriam fazer a “transição de género” e passar a ter as características sexuais do sexo oposto. Sob a falsa promessa de uma “pausa” inócua, a clínica tomada pelas certezas do activismo “trans” fez terapia de conversão. Mais exactamente, converteu cerca de 2000 crianças em doentes reais. Como explica Barnes, “esta é uma história sobre a segurança de um serviço do NHS [SNS britânico], a adequação dos cuidados que presta e o uso de tratamentos pouco fundamentados em alguns dos jovens mais vulneráveis da sociedade. E como tanta gente ficou sentada a observar e não fez nada.”
Em suma, a tese benigna do tempo para pensar serviu de cobertura a uma engenharia social deliberada que experimentou em crianças. Mais adiante abordarei de novo este caso e a mudança radical que provocou nas políticas públicas do Reino Unido, mas retenha-se o principal: o que a RTP apresenta hoje como simples e seguro às nossas crianças e adolescentes já provou ser uma experiência sinistra.
É revelador da fixação em presença que, enquanto se avança nas escolas com a revisão da disciplina de Cidadania, se insista na televisão pública na mesma ideologia que ignora a realidade biológica em favor da “auto-determinação”. O problema não reside apenas num guião de televisão ligeiro, mas num quadro cultural e legal que trata a desconformidade sensorial e psíquica com o sexo de nascimento como algo a normalizar em menores e a resistência dos pais como um crime. O que se viu na televisão pública não é um acidente editorial; é a face visível do edifício legislativo e ideológico que tem vindo a ser cimentado em Portugal à boleia da política de “auto-determinação de género”.
Ganha hoje importância renovada o pedido de fiscalização da constitucionalidade da Lei 15/2024 que a então provedora de Justiça, hoje ministra da Administração Interna, em boa hora submeteu ao Tribunal Constitucional em Abril passado. Alegadamente para proibir “terapias de conversão”, esta lei criminaliza a prudência clínica e atenta contra direitos fundamentais dos pais. Se o desenho animado da RTP nos mostra a “transição social” como algo inócuo (“está tudo na cabeça”), a lei portuguesa encarrega-se de transformar essa ficção em dogma, proibindo que se questione a auto-percepção de uma criança ou adolescente, mesmo que isso signifique menosprezar o princípio da precaução médica e deixar enraizar nessa criança ou adolescente a confusão sobre a sua identidade sexual e a ideia de que “vive presa no próprio corpo”.
Não estamos apenas perante um ataque ao direito dos pais a educar os filhos e a dar-lhes um ensino livre de imposições ideológicas, que lhes apresente o contraditório em matérias não científicas. Estamos perante uma violação do direito elementar dos pais a protegerem os filhos da engenharia social. Esta violação é tanto mais grave quanto mais ignora os prejuízos que as presunções ideológicas em que assenta comprovadamente causam, em primeiro lugar, àqueles que é suposto defender. São eles quem primeiro sofre com a consagração política da abordagem de “auto-determinação” e “afirmação de género” (gender-affirming), segundo a qual requerer diagnóstico médico para a avaliação da falta de correspondência entre a identidade sexual inata e a auto-percecionada consiste numa “patologização estigmatizante”. É a rejeição do acompanhamento médico baseado em conhecimento robusto e no princípio da precaução que está em causa. Uma rejeição que foi ao ponto de estigmatizar e até criminalizar esse acompanhamento, como se demonstrará aqui com a análise das leis e propostas de lei aprovadas pela Assembleia da República (AR) em Dezembro de 2023.
Falamos da vigente Lei 15/2024 (“proíbe as denominadas práticas de ‘conversão sexual’ contra pessoas LGBT , criminalizando os atos dirigidos à alteração, limitação ou repressão da orientação sexual, da identidade ou expressão de género”) e do Decreto AR 127/XV sobre as medidas a adoptar pelas escolas para a aplicação da Lei 38/2018 (conhecida como lei de auto-determinação de género). Embora este Decreto AR 127/XV tenha sido vetado, analisá-lo é crucial não pelo seu efeito jurídico (nulo), mas porque revela a intenção legislativa e política da maioria parlamentar que, quase em simultâneo, aprovou a dita Lei 15/2024. No fundo, funciona como o mapa da estrada que o activismo pretende percorrer.
Contrariamente ao conhecimento científico existente e que conduziu à mudança recente de política em vários países, a chamada “transição social”, em particular, é apresentada em Portugal como algo indiscutivelmente positivo e inofensivo. Tornou-se motivo de opróbrio dizer o contrário e opôr-se à “transição social” de crianças e adolescentes defendendo, entre outras coisas, o seguinte: i) que a chamada “incongruência de género” nessas idades é, sobretudo, fomentada pelo entorno social; ii) que a normalização da abordagem de “afirmação de género” através da “transição social”, isto é, sem fundamentação médica, inicia os menores numa rampa deslizante, a qual, além de agravar os problemas de saúde mental que é suposto resolver, ainda lhe acrescenta outros – e graves – problemas de saúde física; iii) que essa mesma abordagem arrisca tornar doentes para toda a vida crianças e adolescentes saudáveis ou cujos problemas de saúde a normalização da afirmação de género negligentemente ignora, a ponto de hoje muitos especialistas a classificarem como abuso infantil.
Os pais, professores ou profissionais de saúde que assumam semelhantes posições arriscam penas severas, como prova a legislação portuguesa aqui citada, não obstante estarem respaldados por informação científica mais do que suficiente. Contrariar ou questionar (por exemplo, mediante a busca de apoio psicológico especializado) a vontade de crianças e adolescentes em rejeitarem o sexo de nascimento e quererem ser vistas como sendo do sexo oposto (ou como tendo um dos muitos géneros que nos dizem existir), pode configurar violação da “liberdade da criança” (n.º 3, art.º 5.º do vetado Decreto da AR 127/XV) ou ser classificado como “práticas com recursos de caráter psicológico ou comportamental” e punido com prisão, retirada dos filhos ou proibição de exercício de profissão (art.º 3.º e 4.º da vigente Lei 15/2024; art.º 5º do vetado Decreto da AR 127/XV).
Como bem sintetiza Teresa de Melo Ribeiro, se o objectivo for “alinhar a identidade psicológica [dos menores] com a sua identidade sexual, física e corpórea, chama-se a isso terapia ou prática de ‘conversão sexual”, mas se for “ajudar uma pessoa a ‘mudar’ o seu corpo para o alinhar e conformar com a sua mente, chama-se a isso ‘terapia de afirmação de género’”. Aquelas penas só se aplicam, portanto, no primeiro caso e — note-se — mesmo que os principais implicados queiram ajuda especializada para voltar a sentir-se em harmonia com o sexo de nascimento (prova-o a supressão da expressão “sem consentimento” na versão final do texto que daria origem à vigente Lei 15/2024). Com outra agravante: quanto mais nova for a criança contrariada nesta matéria, maior a punição para os adultos (art.º 3.º da Lei 15/2024). Se, pelo contrário, o objetivo for “fazer corresponder o corpo à sua identidade de género”, as coisas são totalmente diferentes: “o Estado deve garantir, a quem o solicitar, a existência e o acesso a serviços de referência ou unidades especializadas no SNS, designadamente para tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza, destinadas a fazer corresponder o corpo à sua identidade de género” (art.º 11.º, n.º1 da Lei 38/2018). As penas acima descritas não se aplicam, portanto, nestes casos, embora sejam precisamente os que correspondem a “intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações irreversíveis ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa” (art.os 2.º e 3º da Lei 15/2024). Como aqui se defendeu, estas e outras incongruências só o são do ponto de vista puramente lógico; com a matriz político-ideológica de onde provêm não há contradição.
É este o resultado de uma política assente numa teoria sobre a identidade sexual humana que considera irrelevante a dimensão objectiva do género (o sexo biológico) e sobrevaloriza a subjectiva, olhando masculino e feminino como “construção cultural” que haveria que “desconstruir”, por alegadamente ser fonte de opressão e desigualdade. Em seu lugar, apresenta-se o género como experiência individual e auto-determinada, desligada da realidade biológica. O verdadeiro alcance dos edulcorados propósitos dessa política (“desconstrução de estereótipos”, “transformação de normas e comportamentos”, “combate à discriminação”, “inclusão”, etc.) revela-se em leis e práticas como as portuguesas, que tipificam como crime algo que o conhecimento científico sobre o assunto e as políticas públicas consequentes noutros países antes exigem reconhecer como prudente e legítima concretização do direito fundamental dos pais a proteger os filhos.
Na parte II e III deste artigo reflecte-se sobre a política vertida nessas leis, analisando as directrizes e práticas que vêm sendo adoptadas nas escolas acerca da “auto-determinação de identidade e expressão de género”, em especial os chamados processos de “transição de identidade de género”, que abrangem “transição médica” e/ou “transição social”. Nesse contexto, além de desenvolvimentos noutros países baseados no conhecimento científico acumulado, destacam-se os materiais distribuídos pela Direcção-Geral de Educação (DGE) e pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) para orientação do ensino e de todo o pessoal escolar, como o Guia “O Direito a Ser nas Escolas”, cuja retirada a AR ordenou em Fevereiro passado.
Em Portugal, a Lei 38/2018, que “estabelece o direito à auto-determinação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais”, estipula que as pessoas entre os 16 anos e os 18 anos podem mudar de sexo no registo civil através dos representantes legais sem necessidade de “referências a diagnósticos de identidade de género” (art.º 7.º, n.º 2). Ao contrário do que a lei prévia impunha, mesmo que inclua a administração de fármacos bloqueadores de puberdade e de hormonas cruzadas, a mudança não pode ser travada mediante exigência de diagnóstico médico, pois a Lei 38/2018 determina, sem especificar a idade mínima, que “o Estado deve garantir, a quem o solicitar, a existência e o acesso a serviços de referência ou unidades especializadas no SNS, designadamente para tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza, destinadas a fazer corresponder o corpo à sua identidade de género.” (art.º 11.º, n.º 1).
Finlândia e Suécia promoveram, a partir de 2015, esta mesma abordagem, chamada de “afirmação de género”. No entanto, desde 2020 e 2022, respectivamente, aqueles países determinaram que se retomasse a prática anterior: a psicoterapia deveria voltar a ser o tratamento de primeira linha. Os casos de “incongruência de género” em menores de 18 anos deveriam comprovar-se com relatório médico resultante de avaliação clínica multidisciplinar, que atestasse a gravidade daquela incongruência e desconformidade social e psíquica persistente, confirmando diagnóstico de perturbação de identidade de género, também designada “disforia de género”. Só nestes casos se devia autorizar a........





















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