O complexo de Ideiafix no Portugal de 2025
Havendo nascido a 6 de Maio de 1972, não tive, naturalmente, consciência de que o dia 25 de Abril de 1974 fosse diferente dos demais. Sei que a mãe estava grávida da minha irmã, a Patrícia, a qual nasce a 28 de Junho seguinte. Hoje eu tenho 53 anos e ela 51. Crescemos rodeados de árvores, algumas frutíferas, outras arbustivas, umas pequenas, outras grandes. Subimos os seus troncos, colhemos laranjas e nêsperas nos ramos mais altos. Fizemos piqueniques em bosques, aprendendo a desfrutar da paz, silêncio, sombra que uma, ou diversas árvores proporcionam. Aprendemos a respeitar uma árvore como testemunho de um passado por vezes remoto, e a ver no seu conjunto figuras veneráveis, muito antes de a adaptação dos livros de Tolkien de O Senhor dos Anéis representarem, nos pequeno e grande ecrãs, árvores como seres falantes, dotados de consciência e de ética.
Em diversas civilizações europeias, a árvore constitui um símbolo poderoso: dos bosques sagrados dos celtas e dos romanos, ao cedro da bandeira da nação libanesa, uma floresta era encarada enquanto espaço tabu, sacralizado pelo significado oculto, e rituais encantatórios que encerrava. Frágil por natureza, pela escassez de água e acção do fogo, a árvore constitui um elo com o passado, seja o Major Oak Tree que vi em 1996 em Notthingham (em Inglaterra), sejam as oliveiras milenares que, nos últimos tempos, estão a ser valorizadas, celebradas e, por vezes, transplantadas, na Península Ibérica.
Cedo aprendi que as árvores podem morrer por acção de doenças infecciosas, pois a minha mãe, jornalista, escreveu um artigo sobre a morte dos ulmeiros, em Portugal, na década de 1970. (Não por acaso, Ulmeiro é o nome de uma conhecida editora portuguesa de antanho). A partir do início da década de 1980, os incêndios florestais começaram a ser uma praga recorrente em Portugal, do qual o desastre humano de 24 de Junho de 2017, em Pedrogão Grande, foi o culminar, com a morte de pelo menos 66 pessoas.
Quando vivi na zona do Parque-Natural Sintra-Cascais, entre 1996 e 2003, comecei a aperceber-me de que as políticas nacionais de conservação e salvaguarda da floresta portuguesa e de ordenamento do território pouco, ou nada, conseguem fazer para atalhar atropelos ambientais e ecológicos gravíssimos. Lendo, ao longo dos anos, os artigos de opinião de Luísa Schimdt no jornal Expresso, descobri a proliferação do que se convencionou designar por pato-bravismo. Isto é, a sobreposição dos interesses de empreiteiros, empresas de construção civil, cimenteiras e indústria da celulose em devastar, sub-repticiamente, o manto verde do que resta de um Portugal medieval coberto, sobretudo, por florestas, tal como José Leite de Vasconcelos descreve no primeiro volume de um dos seus monumentais estudos, Etnografia Portuguesa.
E se é verdade que sofro, tal como o cãozinho de Obélix, Ideafix, quando uma árvore é derrubada, o que dizer, ou o que sentir, quando tempestades como o ciclone de 19 de Janeiro de 2013 e a Martinho, de 3 de Abril de 2025 provocam estragos incalculáveis na Serra de Sintra, outrora venerada pelos nossos antepassados como o Monte da Lua, na época pré-histórica do Calcolítico?
É verdade que estes fenómenos climatéricos extremos são imprevisíveis, e cíclicos — antes de 2013 e 2025, existe memória de outro ciclone, a 15 de Fevereiro de 1941. Contra intempéries de tal magnitude, pouco, ou muito pouco, pode ser feito, antecipadamente, uma vez que resultam de uma conjugação de ventos ditos ciclónicos com chuvadas suficientemente fortes para alagar os terrenos, de forma que a queda de grande quantidade de árvores fica muito facilitada.
Porém, o que dizer do que alguns ecologistas e ambientalistas consideram serem atropelos reiterados à natureza, em Portugal: a construção em leitos de cheia, em zonas dunares, em áreas protegidas (como a de Sintra-Cascais)? A ausência de um cadastro predial que permita obrigar os proprietários, ou os seus herdeiros, a limparem compulsivamente as zonas de mato e floresta? E, em contraste, em zonas urbanas, o........
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