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Geopolítica literária

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15.09.2025

Mas tu me dá que cumpra,
ó grão rainha das musas,
c’o que quero à nação minha.

Lusíadas, X, Estância 154

A vida de Luís Vaz de Camões (1524 -1580) – cujo quinto centenário do nascimento comemoramos este ano de 2025 – decorreu no turbilhão das guerras de religião do século XVI: no Mediterrâneo e no Índico face à expansão turco-otomana, e no Norte da Europa no contexto da violenta disputa ideológica e militar que a Reforma Protestante desencadeou. Os Lusíadas nasceram dessa tripla conjuntura, dedicando à nação portuguesa uma epopeia que é simultaneamente uma narrativa da expansão e uma interpretação providencial da missão do reino de Portugal no seio da Cristandade dividida.

Envolvido desde cedo nas campanhas contra o expansionismo muçulmano, Camões alistou-se por volta de 1547 e participou numa expedição de reforço da guarnição de Ceuta, onde perdeu um olho. Ceuta fora conquistada pelos portugueses em 1415 e era alvo de ataques e cercos frequentes por forças marroquinas apoiadas por aliados otomano-berberes. Esta experiência marcou profundamente a sua vida e simbolizou a ligação pessoal do poeta à vertente militar defensiva do império português contra os otomanos e seus aliados.

A biografia de Camões não pode, portanto, dissociar-se do quadro maior das lutas da Cristandade contra a ofensiva islâmica. Tal vivência reflete-se n’Os Lusíadas, cuja dimensão bélica ecoa diretamente a experiência militar do próprio autor, privilegiando a vertente guerreira da expansão portuguesa rumo ao Índico em detrimento da colonização mais pacífica do Novo Mundo, já que o Brasil surge na epopeia apenas como cenário periférico, convocado sobretudo para universalizar a empresa ultramarina.

A Batalha de Diu (1509) é o marco fundador da supremacia naval dos portugueses no Índico – onde os portugueses chegaram em 1498 – em confronto direto com as forças locais hindus e islâmicas. Camões preserva a memória dos combates no Índico no Canto X, exaltando a coragem dos que, em clara inferioridade numérica, resistiram a “Mouros por mar, Gentios pola terra.” (estância 12). A epopeia literária interpreta essa luta não apenas como um episódio militar, mas como parte de uma cruzada mais ampla, herdeira das guerras medievais contra o Islão, agora transpostas para o palco global da primeira expansão marítima europeia.

Chamará o Samorim mais gente nova;
Virão Reis [de] Bipur e de Tanor,
Das serras de Narsinga, que alta prova
Estarão prometendo a seu senhor;
Fará que todo o Naire, enfim, se mova
Que entre Calecu jaz e Cananor,
D’ambas as Leis imigas pera a guerra:
Mouros por mar, Gentios pola terra.

Canto X, est. 12

Na Europa quinhentista de Camões, a Reforma Protestante, deflagrada em 1517, e a Contra-Reforma católica moldaram de forma profunda o clima religioso e cultural, impregnando-o de tensões espirituais e de conflitos ideológicos e militares.

Ao contrário do que sucedia no coração da Europa, onde o conflito religioso se traduziu, não apenas em controvérsias teológicas sobre as doutrinas de Lutero e Calvino, mas também em prolongadas guerras entre católicos e protestantes — como a Guerra dos Camponeses na Alemanha (1524–1525), as Guerras de Religião em França (1562–1598) ou a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648) — a legitimação do catolicismo n’Os Lusíadas não se faz pelo confronto direto contra a Reforma.

O horizonte da epopeia é distinto: a afirmação da ortodoxia romana emerge sobretudo da praxis imperial portuguesa, que conjuga a luta militar contra mouros e turcos com a missão espiritual de expansão da fé. Os Lusíadas projetam, assim, a defesa do catolicismo não no palco europeu da guerra confessional, mas no espaço ultramarino do confronto com o Islão, onde Portugal surge como guardião avançado da Cristandade. A epopeia apresenta a experiência histórica de Portugal, não como instrumento das guerras confessionais, mas como fronteira militante da Cristandade. Algo semelhante se verificara já no século anterior, quando, com a conquista de Ceuta e o arranque da expansão ultramarina, os portugueses apontaram um caminho de saída para as disputas europeias, nomeadamente face ao prolongado conflito da Guerra dos Cem Anos.

É por isso que, em Os Lusíadas, a expansão portuguesa aparece como missão providencial de defesa e difusão da fé, um modo próprio de o catolicismo se afirmar no mundo. Neste sentido, a epopeia camoniana não constitui apenas um monumento nacional, mas também uma resposta cultural da ortodoxia católica às divisões religiosas da Europa, lembrando que a vocação universal da Igreja se realiza, não na guerra fratricida entre cristãos, mas antes na expansão da cristandade para além da Europa.

Embora não entrando diretamente nas polémicas teológicas da época, a obra camoniana inscreve-se no universo ideológico da Contra-Reforma: não só a Providência divina fundamenta a missão portuguesa, como a própria expansão se converte em prova viva da legitimidade do catolicismo perante o desafio da Reforma. Ao representar o confronto dos portugueses com o Islão como missão simultaneamente militar e espiritual, Camões demonstra que a fé romana não é apenas a doutrina inspiradora da expansão ultramarina, mas é ela própria confirmada e glorificada pelos feitos imperiais, sendo estes mais eficazes na afirmação da ortodoxia do que qualquer disputa com os reformadores, fosse ela doutrinária ou militar.

A fé romana não apenas sustenta a empresa ultramarina, como também é por esta confirmada e exaltada, em contraste com o confronto direto com os países protestantes.

E vós, ó bem-nascida segurança
Da Lusitana antígua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;

Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada;
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas, e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou)

Os Lusíadas, Canto I, est. 6 e 7

Desta forma, Os Lusíadas articula de forma clara dois planos complementares: o militar-imperial e o religioso-ideológico. Ao narrar as viagens e as batalhas contra o Islão, inscreve Portugal na linha da defesa da Cristandade perante o avanço otomano; ao atribuir carácter providencial à expansão, integra-se no horizonte da Contra-Reforma: a nação portuguesa surge como ponte entre continentes e guardiã da fé universal.

A epopeia camoniana assume, desse modo, uma dimensão global, refletindo o primeiro conflito planetário pela supremacia marítima e religiosa. Para além de uma epopeia da expansão, Os Lusíadas são espelho das convulsões religiosas da Europa. O poema encena Portugal como força central de contenção do poder otomano e como agente providencial da Igreja católica num mundo fragmentado. Neste duplo papel – militar e espiritual – reside a grandeza universal da obra de Camões, que se afirma não apenas como poeta da nação, mas como intérprete literário da primeira globalização.

Importa, portanto, situar a obra e o autor no seu quadro histórico mais amplo, analisando o contexto geopolítico em que decorreu a........

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