A herança geopolítica do Papa Francisco
A análise da ação geopolítica de uma figura religiosa requer metodologias que transcendem a avaliação do poderio militar ou económico, requerendo um enfoque sobretudo em soft power e influência global. Ainda que um líder religioso não disponha de exércitos — como ironicamente questionara Stalin ao desdenhar “quantas divisões tem o Papa?” — a sua capacidade de moldar eventos políticos não pode ser subalternizada. A Santa Sé, embora careça de hard power, exerceu historicamente uma considerável influência diplomática e cultural, influenciando correntes de pensamento, mobilizando fiéis e intervindo em crises globais. Um método efetivo para determinar essa influência é examinar como as suas iniciativas espirituais se repercutiram no cenário internacional e que mudanças político-sociais decorreram da sua liderança pastoral. Em síntese, analisa-se a autoridade moral e a rede global de seguidores que conferem peso às ações e pronunciamentos da Santa Sé.
Um exemplo paradigmático dessa dinâmica foi o pontificado de João Paulo II (1978–2005). A atuação do Papa polaco demonstrou, de forma concreta, como um líder religioso pode influenciar os rumos geopolíticos da história. João Paulo II abraçou a missão de enfrentar a opressão comunista no Leste europeu, onde nascera. Em junho de 1979, numa peregrinação histórica à Polónia, repetiu as palavras que proferiu no início do seu pontificado na varanda da Basílica de S. Pedro e bradou perante a multidão “Não tenham medo! Abram as portas a Cristo”, insuflando motivação, coragem e união à resistência anti-soviética. O seu compromisso espiritual e político alimentou movimentos democráticos sindicais como o Solidarność (Solidariedade) de Lech Walesa, expondo a falta de legitimidade do regime comunista. Em pouco mais de uma década, o Muro de Berlim ruiu e a Guerra Fria conheceu o seu fim, praticamente sem derramamento de sangue. Analistas e protagonistas da época creditam substancial parcela desse desfecho à influência do Papa. O próprio Mikhail Gorbachev, último líder da URSS, reconheceu que “o colapso da Cortina de Ferro teria sido impossível sem João Paulo II”. De modo semelhante, Walesa – líder sindical e político polaco e Nobel da Paz – chegou a atribuir “50%” da queda do Muro de Berlim à atuação de João Paulo II. Tal avaliação não diminui a complexidade dos fatores envolvidos, mas atesta que a liderança moral e espiritual de Karol Wojtyla foi catalisadora na erosão da ideologia comunista na Europa do Leste e na consequente conclusão da Guerra Fria. Este caso emblemático indica a metodologia: comparar objetivos proclamados pelo líder religioso e eventos políticos subsequentes, buscando correlações fundamentadas em testemunhos, documentos e análises históricas. No caso de João Paulo II, há consenso de que a sua herança geopolítica inclui o papel decisivo que exerceu para enfraquecer o comunismo e promover a liberdade nos países sob órbita soviética.
Com esse precedente histórico-metodológico, pode-se aplicar uma abordagem análoga ao Papa Francisco, identificando e examinando os traços geopolíticos do seu pontificado. Se João Paulo II foi o “Papa da Guerra Fria” por excelência, avaliemos de que forma Francisco — um Papa do sul global, eleito em 2013 — imprimiu sua marca geopolítica no tabuleiro internacional.
O Papa Francisco emergiu rapidamente como líder religioso com uma ampla agenda geopolítica. Manifestou posicionamentos e iniciativas de impacto global em diversas frentes: foi voz influente em defesa de migrantes e refugiados, denunciando a “globalização da indiferença” diante das crises humanitárias; mediou discretamente a reaproximação........
© Observador
