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A escalada alemã

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16.06.2025

1A guerra na Ucrânia entrou num novo e delicado patamar com a recente mudança de posição da Alemanha quanto aos limites geográficos impostos ao emprego do armamento fornecido a Kiev. Após longos meses de hesitação estratégica por parte de Berlim, a chegada ao poder do chanceler Friedrich Merz em 6 de maio de 2025 marcou uma viragem doutrinária significativa na política de defesa alemã. Essa mudança não tem apenas implicações no campo de batalha ucraniano, como também levanta preocupações profundas sobre a estabilidade estratégica europeia e global. No centro do debate está a decisão de Merz de levantar as restrições de alcance impostas ao armamento fornecido a Kiev, nomeadamente no que toca aos mísseis de cruzeiro alemães Taurus.

2 A Alemanha adotou inicialmente uma postura prudente no apoio militar à Ucrânia, evitando fornecer armas de longo alcance por receio de uma reação russa descontrolada. Não é de estranhar tal prudência, considerando o peso da história: a Alemanha esteve na origem das duas guerras mundiais, e a Rússia (ou União Soviética) foi o país que mais baixas sofreu em ambos os conflitos. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Rússia teve cerca de 1,7 milhão de militares mortos — o número mais elevado entre os beligerantes europeus. Na Segunda Guerra Mundial, sofreu perdas catastróficas: sem contar com as perdas civis, cerca de 8,7 milhões de mortos, o maior número de baixas de todos os países envolvidos. Mesmo descontando as purgas estalinianas, não deixa de ser um número devastador.

Sob o governo anterior de Olaf Scholz, Berlim recusou repetidamente autorizar o envio dos mísseis Taurus — de fabricação alemã e com alcance superior a 500 km — justamente pelos riscos de escalada que o seu uso poderia acarretar. Essa política de restrição da transferência de armamentos capazes de atingir em profundidade o território russo tinha como objetivo evitar que a Alemanha fosse percebida como parte diretamente envolvida no conflito.

Com a recente posse de Friedrich Merz, porém, essa abordagem alterou-se de forma drástica. Merz declarou publicamente que “já não há limitações de alcance para as armas entregues à Ucrânia” pelos aliados ocidentais. Por outras palavras, Berlim está disposta a permitir que Kiev utilize armamento ocidental para atingir alvos em solo russo, algo que anteriormente era virtualmente tabu. Embora Merz não tenha mencionado explicitamente o envio imediato dos mísseis Taurus durante a sua conferência de imprensa com o presidente Volodymyr Zelensky, deu a entender claramente que a restrição ao uso desse armamento foi removida como parte de um alinhamento mais amplo entre os principais aliados. De facto, a França e o Reino Unido já tinham fornecido a Kiev mísseis de cruzeiro de longo alcance equivalentes (os SCALP/Storm Shadow), e os Estados Unidos gradualmente alargaram as limitações ao emprego de armamento americano próximo das fronteiras russas. A Alemanha de Merz sinalizou que não quer ficar para trás: “faremos tudo” para apoiar militarmente a Ucrânia, prometeu o novo chanceler, numa rutura visível com o tom cauteloso do governo anterior.

Essa alteração de doutrina representa uma inversão da política de segurança alemã, outrora marcada pela moderação. O próprio Merz assumiu uma postura muito mais assertiva do que a do seu antecessor Scholz, contrastando com a reticência que prevaleceu em Berlim desde o início da invasão russa. Para um país que durante décadas cultivou uma cultura estratégica de contenção e diálogo (moldada pela memória da Guerra Fria e pela dependência energética da Rússia), a decisão de desbloquear os limites geográficos dos Taurus assinala uma mudança sísmica. Trata-se de autorizar as capacidades ucranianas de atingir bases e infraestruturas militares em território russo – um passo que Moscovo seguramente interpreta como uma escalada direta por parte de um país líder da OTAN.

3 As reações de Moscovo não tardaram. O Kremlin, através do seu porta-voz Dmitry Peskov, advertiu que a decisão de eliminar limitações de alcance aos ataques ucranianos constitui “uma mudança de política muito perigosa” e a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, disse que Moscovo considerará os ataques com mísseis Taurus à sua “infraestrutura crítica de transporte” como um envolvimento “direto” da Alemanha no conflito ucraniano. Do ponto de vista russo, ao permitir que Kiev lance ataques em profundidade dentro da Rússia (seja com mísseis Taurus ou outros de longo alcance), a Alemanha e os aliados estariam a cruzar mais um patamar, desta vez extremamente sensível. Os receios de escalada tornaram-se palpáveis: instituições como o International Institute for Strategic Studies (IISS), o Royal United Services Institute (RUSI) e o German Council on Foreign Relations (DGAP) alertam para o risco de que basta um erro de cálculo para precipitar um confronto direto entre a Rússia e a NATO – ou pior, para induzir Moscovo a recorrer a armamento nuclear tático na tentativa de reverter uma tendência militar desfavorável no terreno. Efetivamente, na doutrina estratégica nuclear russa, revista em 2024, ampliaram-se as condições em que é permitido o recurso a armas nucleares, incluindo a resposta a um ataque convencional “de grande envergadura” contra a Rússia sustentado por uma potência nuclear adversária (Arms Control).

A decisão de Merz e dos aliados da OTAN de remover aquelas restrições de alcance aumentou também os perigos de uma escalada inadvertida. A história das crises nucleares ensina que, sempre que entram em jogo capacidades ofensivas aptas para atingir centros estratégicos ou o próprio território nacional de uma potência nuclear, aumentam exponencialmente as probabilidades de perceções equivocadas e de reações desproporcionadas. Episódios como a Crise dos Mísseis de Cuba (1962), os alertas acidentais durante a Guerra Fria, e as recentes tensões em torno de sistemas de ataque de precisão de longo alcance, mostram que a combinação de incerteza, tempo de decisão reduzido e medo existencial tende a favorecer respostas impulsivas ou excessivamente agressivas.

O relatório de 2023 da RAND Corporation intitulado “Understanding the Risk of Escalation in the War in Ukraine” distinguiu diferentes tipos de escalada (horizontal, vertical, deliberada, inadvertida) e concluiu que, embora até agora Moscovo tenha evitado certos cenários extremos – em parte por receio de uma resposta direta da NATO e pela gradatividade do apoio ocidental – não há garantia de que essa contenção persista. Se confrontado com reveses graves ou ameaças à sua estabilidade, o Kremlin poderia optar por escaladas perigosas, incluindo ataques diretos à NATO ou mesmo o uso de armas nucleares, apesar dos riscos catastróficos. A RAND sublinha ser crucial manter a coesão da Aliança Atlântica – doseando o apoio militar de forma a preservar a unidade entre os aliados – e planear respostas coordenadas para eventuais escaladas russas, além de preservar canais de comunicação abertos com Moscovo para travar uma espiral fora de controlo.

4 A mudança em Berlim ocorre num contexto de endurecimento progressivo da postura dos principais aliados da Ucrânia na Europa e na América do Norte. Nos primeiros meses após a invasão russa de 2022, tanto Washington quanto capitais europeias como Londres, Paris e Berlim adotaram uma atitude cautelosa.

Essa prudência inicial traduziu-se em múltiplas limitações: opções como a imposição de uma zona de exclusão........

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