O meu 25 de Abril
Gosto do meu 25 de Abril inteiro, praticamente cru, com as apropriações à parte. Gosto do meu 25 de Abril como do bacalhau: com todos, sem escolher à porta quem pode ou não pode entrar. Gosto do meu 25 de Abril sem ornamentações, temperos excessivos, picante, corantes, emulsionantes – mascaram-lhe o sabor, tornam-no igual a tudo o resto (o 25 de Abril tem dele picante e cor que chegue; e de não ser, pelo menos, muito emocionante, é coisa de que ninguém o pode, certamente, acusar). Gosto do meu 25 de Abril repetido, ano após ano, igualzinho, sem distorções. De ouvir as canções, de ver e cheirar os cravos, de descer a avenida se me apetecer, de não descer se não me apetecer, de ouvir os discursos ou nem ligar a televisão, de aproveitar a data para aprender mais sobre ela, ler as memórias de um capitão, ver o documentário sobre uns implicados, assistir à conferência duns especialistas – ou de me reservar ao direito de, naquele ano, usufruir do feriado para me pôr bem longe daqui, ao sol, sem pensar um minuto no Carmo e nos tanques e nos três “Dês” e em coisa nenhuma. Porque o 25 de Abril também se fez para isso: para de vez em quando nos reservarmos o direito de não lhe passar cartão.
Gosto, portanto, do meu 25 de Abril como a laranja de Ary dos Santos e Fernando Tordo em “Cavalo à Solta”: amargo e doce. Com a esquerda e a direita, os pobres e os ricos, os militares e os civis, os políticos e os apolíticos, os deslumbrados e os cépticos, os românticos e os desiludidos, os entusiastas e os críticos, as suas contradições, os seus paradoxos, os seus sucessos e até os seus fracassos. Gosto do meu 25 de Abril por me permitir concordar e discordar de tudo o que outros digam dele, por permitir que todos concordem ou discordem do que eu diga. Gosto do meu 25 de Abril porque, graças a ele, posso discutir o 25 de Abril. E posso chamá-lo meu, e meu é certamente, mesmo que ainda não tivesse nascido. É........
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