A estrutura conservadora da democracia
É quase um consenso político a ideia de que a democracia é – e foi – fundacional. Aliada a esta ideia está uma outra, que é a de que, em abril de 76, da pena e do voto dos deputados constituintes, fechando-se o texto constitucional, se constituiu uma nova ordem de coisas, distintas qualitativamente de tudo o que conheceram os nossos 900 anos de história.
Estas duas ideias resumem-se numa: hoje, erige-se a democracia na sua potência originadora, seja dos valores (democráticos), seja das instituições, seja, enfim, do sistema jurídico português como um todo. Ou seja, é só a partir da democracia que se fala em valores, se discute direitos e deveres e, sobretudo, se pensa o bem e o mal.
Este consenso tem manifestações interessantes, e talvez o mais eloquente seja o da transformação da “democracia” – ou “democrata” – em adjetivo moral. A democracia preside de tal modo ao nosso imaginário comum que, misteriosamente, todo o leitor intui como elogiosos comentários como: “Aquele professor é democrata na sua abordagem”, ou, mais bizarro ainda, “O museu tinha uma disposição democrática”. É como se a palavra reservasse em si uma espécie de aura emotiva de coisas boas, de tal modo que, ao usá-la numa frase, esta irradiasse a sua onda de positividade para o substantivo que qualifica.
Mas, para este artigo, a manifestação deste consenso que mais interessa é outra: a de que cada vez mais se sente um alarmismo apocalíptico em relação à decadência da democracia, em que todos pressentimos (ou devíamos pressentir) que a derrota da democracia significa a revogação........
© Observador
